Trágico e famoso caso de punição disciplinar de um advogado francês do século passado, Charles Ledru, nascido em 1801, por violação das regras da profissão.
Era homem de forte convicção religiosa católica e de grande nobreza moral, embora não se lhe reconheça uma estatura de grande advogado, principalmente porque não soube enfrentar a adversidade.
A violação das regras morais da profissão é uma matéria altamente delicada e Ledru comportou-se de forma inábil e confusa, dando margem a todas as conjeturas, que não cessaram até hoje.
A paixão do advogado pela justiça e contra a injustiça, não pode ultrapassar os limites da prudência, nem comprometer o respeito que se deve às decisões judiciárias com autoridade de coisa julgada, aos magistrados, aos tribunais, aos jurados e testemunhas. Enquanto existe uma condenação passada em julgado, enquanto não se faz a revisão de um processo, advogado algum pode dizer que a coisa julgada não corresponde à verdade, pois isto importa em ultraje à justiça.
E no caso que vamos relatar, até hoje não ficou demonstrada a inocência do condenado.
Em 1827 Ledru se torna o advogado da viúva Le Bon, que acusa o padre italiano José Contrafatto, residente no mesmo prédio que ela, de ter praticado ato libidinoso com sua filha de cinco anos, transmitindo-lhe uma doença venérea, sendo que este detalhe se revelou falso em perícia médica a que ele se submeteu.
A época era de grande reação contra o clero em geral, e Ledru, sem maior exame de fatos, tendo como objetivo demonstrar que o ato criminoso de um padre não podia refletir a moral de todo o clero, e que não havia, como a opinião pública pensava, altos interesses em abafar o caso e proteger Contrafatto, tornou-se um simples instrumento de vingança em nome da vítima e sua família, obtendo do júri a condenação do acusado à prisão perpétua com trabalhos forçados, exposição em praça pública e marca de ferro em brasa das letras T.F. (trabalhos forçados).
Vendo que a sentença tardava em ser executada, ele publica num jornal um desmentido sobre rumores de possível comutação da pena, exigindo o imediato cumprimento da decisão, com um encarniçamento que o transformou de advogado em auxiliar direto do carrasco.
Na época desses fatos, Ledru era jovem e sedento de publicidade, tendo obtido fama e clientela com o caso. Em janeiro de 1828 a sentença foi cumprida à risca. Passam-se os anos, e Ledru tem ocasião de conversar vez por outra com as testemunhas do processo, algumas das quais se tornaram também clientes.
Começa a se surpreender com a atitude de algumas delas, que gostam de lhe dar a entender que foi graças a elas que ganhou o processo, e entra numa crise de consciência, acabando por se convencer de que o padre é inocente. Faz um pedido de indulto, que é concedido, pois as autoridades se convencem facilmente quando quem fala a favor do condenado é o homem que mais trabalhou para puni-lo. Contrafatto havia cumprido dezoito anos de prisão.
Depois de libertado, o padre pediu-lhe uma carta confidencial de recomendação para mostrar a seus superiores na Itália, com o que Ledru concordou, pois o padre seria em breve expulso para a sua pátria.
A carta de Ledru continha a seguinte frase: "várias das principais testemunhas do vosso infeliz caso vieram me confiar que elas tinham alterado a verdade para agravar vossa posição". Embora Ledru acreditasse na absoluta inocência do condenado, e a Igreja também, desse texto não se podia deduzir que ele afirmava a inocência de Contrafatto. Este, pretextando que poderia perder a carta em viagem, solicitou de Ledru permissão para consigná-la em notas de um tabelião, com o que também ficaria assegurada a sua autenticidade. Assim foi feito e, por ocasião da lavratura do ato, o padre pediu a Ledru que substituísse as palavras "agravar vossa posição" por "vos perder", tendo ele consentido.
Isto equivalia a uma alteração capital de sentido, pois, se pela redação anterior o máximo que se poderia admitir é que houve injustiça na medida da pena (agravou-se o que de certa forma era grave), pela nova redação declarava-se pura e simplesmente que a coisa julgada era mentirosa e que as testemunhas tinham contribuído para a condenação deliberada de um inocente.
Era o desprestígio da justiça, o ultraje à coisa julgada, a desmoralização do julgamento. Equivalia a um certificado de inocência dado por um particular a um condenado que não pediu revisão de processo.
Não se sabe por obra de quem, pois inimigos não faltavam a Ledru como acontece com todos os bem sucedidos na vida, a carta foi publicada num jornal, provocando uma tremenda revolta na opinião pública a favor do padre, com a mesma intensidade com que anos antes se tinha manifestado contra ele.
Imediatamente o procurador geral instaurou uma sindicância e, ouvidas todas as pessoas em cujas palavras Ledru baseara suas ilações, nenhuma delas confirmou coisa alguma do que teria sido dito ou confiado a ele. Ledru viu-se ante um dilema cruel: ou enfrentar um processo de denunciação caluniosa demonstrando que as testemunhas realmente mentiram ou confessar que se enganou.
Neste momento exato é que revelou frouxidão, não fazendo nem uma coisa nem outra. Terminada a sindicância, Ledru foi julgado em 1846 pelo Conselho da Ordem dos Advogados, o mesmo que se omitira em recriminá-lo publicamente quando ele publicou a odiosa carta exigindo o sacrifício do padre, e condenado a um ano de suspensão do exercício da profissão, mas o procurador geral apelou para um órgão superior e Ledru teve a pior pena que pode ocorrer na vida de um advogado: a radiação, ou seja, a eliminação dos quadros da ordem, jamais voltando a advogar.
Como diz lsorni, para um advogado isto equivale a terminar sua vida muito antes que ela o deixe. O que pretendia Ledru: interesse material? publicidade? aparecer como herói de um sacrifício pela justiça? apaziguamento de sua consciência perante um homem que havia ajudado a condenar injustamente? Não se sabe. Seu procedimento não foi de má fé, mas sem dúvida alguma foi leviano. Pecou por excesso de defesa? Excesso de defesa é infração disciplinar?
Deste caso terrível ficou, como salienta Isorni, uma grande lição: jamais cabe ao advogado, qualquer que seja a circunstância, brincar de Ministério Público exigindo a cabeça dos outros.
B. - Jacques Isorni, Les cas de conscience de l'avocat. Perrin ed. Paris, 1965.
Era homem de forte convicção religiosa católica e de grande nobreza moral, embora não se lhe reconheça uma estatura de grande advogado, principalmente porque não soube enfrentar a adversidade.
A violação das regras morais da profissão é uma matéria altamente delicada e Ledru comportou-se de forma inábil e confusa, dando margem a todas as conjeturas, que não cessaram até hoje.
A paixão do advogado pela justiça e contra a injustiça, não pode ultrapassar os limites da prudência, nem comprometer o respeito que se deve às decisões judiciárias com autoridade de coisa julgada, aos magistrados, aos tribunais, aos jurados e testemunhas. Enquanto existe uma condenação passada em julgado, enquanto não se faz a revisão de um processo, advogado algum pode dizer que a coisa julgada não corresponde à verdade, pois isto importa em ultraje à justiça.
E no caso que vamos relatar, até hoje não ficou demonstrada a inocência do condenado.
Em 1827 Ledru se torna o advogado da viúva Le Bon, que acusa o padre italiano José Contrafatto, residente no mesmo prédio que ela, de ter praticado ato libidinoso com sua filha de cinco anos, transmitindo-lhe uma doença venérea, sendo que este detalhe se revelou falso em perícia médica a que ele se submeteu.
A época era de grande reação contra o clero em geral, e Ledru, sem maior exame de fatos, tendo como objetivo demonstrar que o ato criminoso de um padre não podia refletir a moral de todo o clero, e que não havia, como a opinião pública pensava, altos interesses em abafar o caso e proteger Contrafatto, tornou-se um simples instrumento de vingança em nome da vítima e sua família, obtendo do júri a condenação do acusado à prisão perpétua com trabalhos forçados, exposição em praça pública e marca de ferro em brasa das letras T.F. (trabalhos forçados).
Vendo que a sentença tardava em ser executada, ele publica num jornal um desmentido sobre rumores de possível comutação da pena, exigindo o imediato cumprimento da decisão, com um encarniçamento que o transformou de advogado em auxiliar direto do carrasco.
Na época desses fatos, Ledru era jovem e sedento de publicidade, tendo obtido fama e clientela com o caso. Em janeiro de 1828 a sentença foi cumprida à risca. Passam-se os anos, e Ledru tem ocasião de conversar vez por outra com as testemunhas do processo, algumas das quais se tornaram também clientes.
Começa a se surpreender com a atitude de algumas delas, que gostam de lhe dar a entender que foi graças a elas que ganhou o processo, e entra numa crise de consciência, acabando por se convencer de que o padre é inocente. Faz um pedido de indulto, que é concedido, pois as autoridades se convencem facilmente quando quem fala a favor do condenado é o homem que mais trabalhou para puni-lo. Contrafatto havia cumprido dezoito anos de prisão.
Depois de libertado, o padre pediu-lhe uma carta confidencial de recomendação para mostrar a seus superiores na Itália, com o que Ledru concordou, pois o padre seria em breve expulso para a sua pátria.
A carta de Ledru continha a seguinte frase: "várias das principais testemunhas do vosso infeliz caso vieram me confiar que elas tinham alterado a verdade para agravar vossa posição". Embora Ledru acreditasse na absoluta inocência do condenado, e a Igreja também, desse texto não se podia deduzir que ele afirmava a inocência de Contrafatto. Este, pretextando que poderia perder a carta em viagem, solicitou de Ledru permissão para consigná-la em notas de um tabelião, com o que também ficaria assegurada a sua autenticidade. Assim foi feito e, por ocasião da lavratura do ato, o padre pediu a Ledru que substituísse as palavras "agravar vossa posição" por "vos perder", tendo ele consentido.
Isto equivalia a uma alteração capital de sentido, pois, se pela redação anterior o máximo que se poderia admitir é que houve injustiça na medida da pena (agravou-se o que de certa forma era grave), pela nova redação declarava-se pura e simplesmente que a coisa julgada era mentirosa e que as testemunhas tinham contribuído para a condenação deliberada de um inocente.
Era o desprestígio da justiça, o ultraje à coisa julgada, a desmoralização do julgamento. Equivalia a um certificado de inocência dado por um particular a um condenado que não pediu revisão de processo.
Não se sabe por obra de quem, pois inimigos não faltavam a Ledru como acontece com todos os bem sucedidos na vida, a carta foi publicada num jornal, provocando uma tremenda revolta na opinião pública a favor do padre, com a mesma intensidade com que anos antes se tinha manifestado contra ele.
Imediatamente o procurador geral instaurou uma sindicância e, ouvidas todas as pessoas em cujas palavras Ledru baseara suas ilações, nenhuma delas confirmou coisa alguma do que teria sido dito ou confiado a ele. Ledru viu-se ante um dilema cruel: ou enfrentar um processo de denunciação caluniosa demonstrando que as testemunhas realmente mentiram ou confessar que se enganou.
Neste momento exato é que revelou frouxidão, não fazendo nem uma coisa nem outra. Terminada a sindicância, Ledru foi julgado em 1846 pelo Conselho da Ordem dos Advogados, o mesmo que se omitira em recriminá-lo publicamente quando ele publicou a odiosa carta exigindo o sacrifício do padre, e condenado a um ano de suspensão do exercício da profissão, mas o procurador geral apelou para um órgão superior e Ledru teve a pior pena que pode ocorrer na vida de um advogado: a radiação, ou seja, a eliminação dos quadros da ordem, jamais voltando a advogar.
Como diz lsorni, para um advogado isto equivale a terminar sua vida muito antes que ela o deixe. O que pretendia Ledru: interesse material? publicidade? aparecer como herói de um sacrifício pela justiça? apaziguamento de sua consciência perante um homem que havia ajudado a condenar injustamente? Não se sabe. Seu procedimento não foi de má fé, mas sem dúvida alguma foi leviano. Pecou por excesso de defesa? Excesso de defesa é infração disciplinar?
Deste caso terrível ficou, como salienta Isorni, uma grande lição: jamais cabe ao advogado, qualquer que seja a circunstância, brincar de Ministério Público exigindo a cabeça dos outros.
B. - Jacques Isorni, Les cas de conscience de l'avocat. Perrin ed. Paris, 1965.
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