*Dante Busana
Carta Forense - Na maioria das faculdades de Direito ensina-se que a origem do Habeas Corpus está na Magna Carta do Rei João sem Terra. Procede tal afirmação?
Dante Busana - Não. O habeas corpus não é mencionado no preâmbulo e em nenhum dos sessenta e três artigos daquele documento. Aliás, na primeira metade do século XIII (a Magna Carta é de 15 de junho de 1215), O "writ" não passava de ordenança para trazer a juízo pessoa cuja presença era indispensável ao desenvolvimento do processo. Só nos séculos seguintes, mercê de lenta evolução, uma de suas modalidades transformou-se em remédio processual de tutela da liberdade de locomoção.
Também incorreto identificar o habeas corpus com o interdito romano "de homine libero exhibendo", embora semelhantes os procedimentos de ambos. O interdito era ação exibitória de natureza civil, destinada a preservar a liberdade do cidadão contra ação ilegítima de outro cidadão e não, como o habeas corpus, contra ilegalidade ou abuso de poder de agente do Estado, e só excepcionalmente, contra ato de particular.
CF - Qual, então, a influência efetiva da Magna Carta e de outros documentos constitucionais ingleses no habeas corpus?
DB - A Magna Carta e, passados quatro séculos, a Petição de Direitos de 1826, afirmaram a liberdade pessoal e tornaram certo que nenhum indivíduo podia tê-la cerceada, sem justa causa, por qualquer autoridade. O habeas corpus, criação do direito comum, de há muito utilizado para sua tutela, acabou disciplinado pela lei do "Habeas Corpus Amendment Act", de 1679.
CF - Quais antecedentes do habeas corpus no Brasil?
DB - O decreto de 23 de maios de 1821 e a constituição de 1824 vedaram a prisão ilegal e garantiram a liberdade de locomoção que o habeas corpus viria proteger. De nossa primeira Constituição constava o direito de não ser preso, salvo em flagrante delito, sem culpa formada ou ordem escrita da autoridade competente, e o direito à fiança. Ambos os diplomas, não contemplaram, porém, remédio processual expedito de proteção da liberdade pessoal. Para sua defesa era preciso recorrer aos interditos herdados do direito romano, ou à Carta de Seguro do direito português, que, segundo alguns, "tinha alguma coisa de habeas corpus", mas, na verdade, não visava elidir prisão ilegal, mas, como modalidade de liberdade provisória, substituir prisão processual legítima anterior à pronúncia.
CF - Em que momento passou o habeas corpus a integrar nosso ordenamento jurídico?
DB - Como o Código de Processo Criminal do Império (Lei de 29 de novembro de 1832). Verdade que o Código criminal de 1830 contemplava alguns tipos penais protetores do instituto do habeas corpus, antecipando-se à vigência do estatuto processual. Não disciplinava o habeas corpus, porém, e a antecipação da tutela penal ao "writ" deveu-se à suposição de que os dois códigos iriam entrar em vigor simultaneamente, o que não aconteceu.
CF - Levando em conta que os primeiros anos da República os presidentes foram militares, como foi a aceitação do instituto no início do período republicano?
DB - Quando da proclamação da república, o habeas corpus vigorava há sessenta e oito anos e firmes eram suas raízes na consciência jurídica nacional. Por isso mesmo, dele já cuidou o decreto 848, de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal. Logo em seguida, adquiriu dignidade constitucional, figurando na declaração dos direitos e garantias individuais da Constituição de 1821. Nada obstante, não foi tranqüila sua existência durante o governo do Marechal Floriano Peixoto, que resistia ao controle pelo judiciário da legalidade das prisões decretadas em virtude do estado de sítio e da constitucionalidade dos atos do Poder Executivo. Dúvidas alcance do habeas corpus: - tutelaria todos os direitos líquidos ou só do direito de ir e vir? A controvérsia encontrou solução na chamada "teoria brasileira do habeas corpus", com a tutela da liberdade de locomoção e também de outros direitos que a tivessem como condição de exercício.
CF- Como o senhor verifica a utilização do instituto durante o último período da ditadura militar?
DB - O regime militar instaurado em 1964, que sujeitara à competência da Justiça Militar o julgamento dos crimes contra a segurança nacional, estabeleceu também graves restrições ao habeas corpus, pelos Atos Institucionais nºs 05 e 06 de 13 de dezembro de 1968 e 1 de fevereiro de 1969, respectivamente. O primeiro dispunha, no artigo 10: "Fica suspensa a garantia do habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular". O segundo proibia o habeas corpus originário ao Supremo Tribunal Federal, em substituição ao recurso ordinário da decisão denegatória da ordem. Só após a revolução de 1930 e durante o Estado Novo, o "writ" conhecera tão sérias limitações...
CF - Qual sua análise da evolução do "writ" pós Constituição de 1988?
DB - Revogadas as restrições impostas pelo regime militar, o habeas corpus brasileiro, cujas linhas estavam perfeitamente definidas por mais de um século e meio de vigência, voltou a exercer, ainda com mais vigor, o papel de instrumento de controle de legalidade da persecução penal, do cumprimento das penas, ou outra situação em que presente ameaça ou constrangimento efetivo à liberdade pessoal.
Dante Busana - Não. O habeas corpus não é mencionado no preâmbulo e em nenhum dos sessenta e três artigos daquele documento. Aliás, na primeira metade do século XIII (a Magna Carta é de 15 de junho de 1215), O "writ" não passava de ordenança para trazer a juízo pessoa cuja presença era indispensável ao desenvolvimento do processo. Só nos séculos seguintes, mercê de lenta evolução, uma de suas modalidades transformou-se em remédio processual de tutela da liberdade de locomoção.
Também incorreto identificar o habeas corpus com o interdito romano "de homine libero exhibendo", embora semelhantes os procedimentos de ambos. O interdito era ação exibitória de natureza civil, destinada a preservar a liberdade do cidadão contra ação ilegítima de outro cidadão e não, como o habeas corpus, contra ilegalidade ou abuso de poder de agente do Estado, e só excepcionalmente, contra ato de particular.
CF - Qual, então, a influência efetiva da Magna Carta e de outros documentos constitucionais ingleses no habeas corpus?
DB - A Magna Carta e, passados quatro séculos, a Petição de Direitos de 1826, afirmaram a liberdade pessoal e tornaram certo que nenhum indivíduo podia tê-la cerceada, sem justa causa, por qualquer autoridade. O habeas corpus, criação do direito comum, de há muito utilizado para sua tutela, acabou disciplinado pela lei do "Habeas Corpus Amendment Act", de 1679.
CF - Quais antecedentes do habeas corpus no Brasil?
DB - O decreto de 23 de maios de 1821 e a constituição de 1824 vedaram a prisão ilegal e garantiram a liberdade de locomoção que o habeas corpus viria proteger. De nossa primeira Constituição constava o direito de não ser preso, salvo em flagrante delito, sem culpa formada ou ordem escrita da autoridade competente, e o direito à fiança. Ambos os diplomas, não contemplaram, porém, remédio processual expedito de proteção da liberdade pessoal. Para sua defesa era preciso recorrer aos interditos herdados do direito romano, ou à Carta de Seguro do direito português, que, segundo alguns, "tinha alguma coisa de habeas corpus", mas, na verdade, não visava elidir prisão ilegal, mas, como modalidade de liberdade provisória, substituir prisão processual legítima anterior à pronúncia.
CF - Em que momento passou o habeas corpus a integrar nosso ordenamento jurídico?
DB - Como o Código de Processo Criminal do Império (Lei de 29 de novembro de 1832). Verdade que o Código criminal de 1830 contemplava alguns tipos penais protetores do instituto do habeas corpus, antecipando-se à vigência do estatuto processual. Não disciplinava o habeas corpus, porém, e a antecipação da tutela penal ao "writ" deveu-se à suposição de que os dois códigos iriam entrar em vigor simultaneamente, o que não aconteceu.
CF - Levando em conta que os primeiros anos da República os presidentes foram militares, como foi a aceitação do instituto no início do período republicano?
DB - Quando da proclamação da república, o habeas corpus vigorava há sessenta e oito anos e firmes eram suas raízes na consciência jurídica nacional. Por isso mesmo, dele já cuidou o decreto 848, de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal. Logo em seguida, adquiriu dignidade constitucional, figurando na declaração dos direitos e garantias individuais da Constituição de 1821. Nada obstante, não foi tranqüila sua existência durante o governo do Marechal Floriano Peixoto, que resistia ao controle pelo judiciário da legalidade das prisões decretadas em virtude do estado de sítio e da constitucionalidade dos atos do Poder Executivo. Dúvidas alcance do habeas corpus: - tutelaria todos os direitos líquidos ou só do direito de ir e vir? A controvérsia encontrou solução na chamada "teoria brasileira do habeas corpus", com a tutela da liberdade de locomoção e também de outros direitos que a tivessem como condição de exercício.
CF- Como o senhor verifica a utilização do instituto durante o último período da ditadura militar?
DB - O regime militar instaurado em 1964, que sujeitara à competência da Justiça Militar o julgamento dos crimes contra a segurança nacional, estabeleceu também graves restrições ao habeas corpus, pelos Atos Institucionais nºs 05 e 06 de 13 de dezembro de 1968 e 1 de fevereiro de 1969, respectivamente. O primeiro dispunha, no artigo 10: "Fica suspensa a garantia do habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular". O segundo proibia o habeas corpus originário ao Supremo Tribunal Federal, em substituição ao recurso ordinário da decisão denegatória da ordem. Só após a revolução de 1930 e durante o Estado Novo, o "writ" conhecera tão sérias limitações...
CF - Qual sua análise da evolução do "writ" pós Constituição de 1988?
DB - Revogadas as restrições impostas pelo regime militar, o habeas corpus brasileiro, cujas linhas estavam perfeitamente definidas por mais de um século e meio de vigência, voltou a exercer, ainda com mais vigor, o papel de instrumento de controle de legalidade da persecução penal, do cumprimento das penas, ou outra situação em que presente ameaça ou constrangimento efetivo à liberdade pessoal.
* Dante Busana militou na Justiça criminal como membro do Ministério Público paulista e Desembargador do Estado de São Paulo. Autor de "O Habeas Corpus no Brasil" pela Editora Atlas.
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