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Prisão de Arruda ainda não é quebra de paradigma

Por Roberto Wanderley Nogueira

A recente decisão judicial passada pelos dois mais elevados Tribunais da República — Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal — que decretou a prisão preventiva do atual governador do Distrito Federal, tem sido festejada pela nação como sinalizadora de uma virtual mudança de paradigmas em que o sistema político-jurídico brasileiro está assentado.

O argumento, no entanto, pode não passar de uma simples impressão ou até de uma vontade idealizada (desejo cívico). Em que pese a importância histórica e, seguramente, a correção técnica dessa decisão, não se pode, outrossim, descrevê-la como autorizada a mudar os destinos da pátria, fincada em bases culturais bem distintas.

Sobre isso, não se pretende, neste artigo, evidentemente, estabelecer qualquer tipo de abordagem formal da mencionada decisão, segundo suas duas variáveis competenciais em que resultou até aqui consolidada. Em não se conhecendo os autos dos processos respectivos, seria esse um esforço materialmente impossível de empreender e lograr resultado razoável.

Com o objetivo de responder à alegoria do novo paradigma que vem sendo urdido por amplos setores — políticos, corporativos, institucionais, empresariais etc. —, oferece-se, outrossim, um tratamento sociológico sobre o assunto proposto e que se acredita fortemente baseado nos fundamentos antropológicos da formação da sociedade brasileira.

Sobre isso, sem dúvida tomando como elogiável a respectiva decisão em comento, haja vista a crueza das imagens veiculadas repetidas vezes pela TV, ela pode ser esquadrinhada em um determinado contexto, pelo que são considerados os seguintes fatores:

1) seu alvo é um suspeito inteiramente inofensivo: político decadente e abandonado até pelo partido mais à direita do Brasil ao qual pertencia; não tem força nem para esclarecer as arapucas em que se metera tão ingenuamente; não produz risco para o sistema e pode ser execrado tranquilamente com a vantagem de retroalimentar o imaginário coletivo acerca de uma dignidade inexistente na raiz cultural da política brasileira da qual o aparelho judicial é um subsistema (isso repercute o poder judicial tupiniquim, estruturalmente falho: implacável com os fracos, dúctil com os poderosos);

2) o relator da matéria na origem é um magistrado, a par de culto e probo, em fins de carreira, ou seja, não aspira a mais nada na profissão e não enxerga obstáculos corporativos em exercer plenamente a própria magistratura; 3) o relator na mais elevada instância está em rota de colisão ideológica com o presidente do respectivo Tribunal, haja vista decisão anterior em que aquele se sentira certamente diminuído, embora sem razão, haja vista a contrariedade do que ficou decidido no caso Sean Goldman, a cuja menção o julgado que nada tem a ver com o outro caso acabou fazendo referência (inteiramente antiparadigmática).

Nesse cenário é que a decisão em foco resultou adotada. Ela seria evidentemente emancipatória, se outros fossem os fundamentos sociológicos com que administradas, disso a Nação estivesse inteiramente convencida e, de resto, também disposta a repercutir sem eufemismos de ocasião e sem privilégios de classe.

O entendimento deste autor é no sentido de que toda manifestação de Justiça real em uma sociedade periférica como a nossa é somente acidental (ver Justiça Acidental – nos bastidores do Poder Judiciário, 2003, FABRIS, Porto Alegre). Ela só acontece em razão de um jogo de circunstâncias favoráveis e, sobretudo, em face do agente judiciário encarregado da própria decisão. No exercício da função pública judiciária em um país como o Brasil, poucos são, ainda, aqueles que se animam a julgar de conformidade com o que aprenderam na própria formação jurídica, isto é, se aprenderam, haja vista a crise do ensino jurídico que enfrentamos há tanto tempo e ela só recrudesce.

Pensa-se muito antes de agravar o sistema que sufoca e pede sempre passagem em face da própria consciência julgadora. Para isso, não é preciso escolaridade formal. Basta a esperteza. Quem vai, afinal, arriscar o próprio "pescoço" ou as expectativas na carreira — por índole, competitiva e, ademais, estabelecida na forma hierárquica - para perseverar na previsibilidade jurídica de seus julgados? É traição aos compromissos assumidos quando da investidura? Sem dúvida, é! Mas, é exatamente o que pede o sistema político em que os magistrados brasileiros estão acomodados. E ninguém diz que vai contra isso. Pelo contrário, ao primeiro sinal de independência, o juiz começa a palmilhar o seu calvário de hostilizações, inclusive pessoais.

Tampouco assumem a porção enfraquecida dos próprios caráteres. Os vícios constitucionais desse sistema, como a eleição para o denominado “quinto constitucional”, a abordagem do merecimento dos magistrados nas promoções da carreira judicial e a composição da Suprema Corte, em particular, extratificam e consolidam esses desvios, que produzem resultados idiossincráticos, embora não necessariamente.

Parece comum que os juízes aceitem suas carreiras em face dos bons empregos que elas representam, e não exatamente em razão das responsabilidades descortinadas nesses cargos essenciais da República, ainda que a eloquência dos ditos refira justamente o contrário. O que é, aliás, bem compreensível, pois ninguém vai, de ordinário, confessar a própria torpeza, enquanto, por outro lado, os sistemas de seleção à magistratura não exploram vocações, mas conhecimento aplicado. No caso das escolhas políticas, não se fala sequer em processo seletivo e tampouco em estágio probatório, situação que também parece institucionalmente absurda.

De mais a mais, elogios de ocasião à decisão festejada são só elogios. Mais do que isso, é preciso verificar se há uma rotina de agravos à desonestidade de toda espécie, qualidade e grau (equal justice under law). Desse modo, enquanto não se puder dimensionar atitudes de rotina e protagonistas dotados de perfis socialmente transformadores, não apenas retóricos e também midiáticos, especialmente nas posições mais proeminentes da República, ainda não teremos quebrado a cadeia de dominação que tem origem na ditadura e, talvez, na colônia brasileiras. Sobre isto, cumpre observar que os Tribunais são os órgãos mais proverbialmente herméticos de todo o setor público nacional. Neles a política é comumente praticada na forma do processo, nem sempre devido e nem sempre legal. A autonomia dos Tribunais também tem se revelado um mal em si mesmo. Juízes deveriam ser pagos apenas para julgar, e nada mais.

De um certo modo, somos colônia ainda. Os episódios de vanguarda são apenas espetáculos para acomodar a pressão social que se dispõe claramente a irromper em estratégias de revolta e resistência cívica e moral. Quando esse cenário se descortina, abrem-se as comportas do sistema para permitir que vazem as energias sobreexcedentes da sociedade a fim de evitar a irrupção.

Convém não alavancar-se no recente episódio do governador do DF como argumento de verificação de uma mudança paradigmática na sociedade brasileira que promete eliminar a cantilena da impunidade. Se, de um lado, o tal personagem parece em tudo merecer a constricção judicial em debate, além de sua reincidência em fatos notoriamente desabonadores, desenho que segue aviventado como uma novela folhetinesca, capítulo a capítulo, nas imagens focalizadas e descritas pela grande imprensa, em particular, e a cujos braços quase todos, afinal, se insinuam um pouco no objetivo de aparecer, de outro, lamentavelmente, a frustração pode ser ainda maior em razão dos ensinamentos da história e pela causa do tempo que a tudo esclarece.

Aguardemos, pois, antes de avalizar que os paradigmas no Brasil são outros e que, afinal, se fez Justiça nesse caso.




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