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De que real é esta crise o espectáculo?


Por Alain Badiou, publicado originalmente no Le Monde

Tal qual nos é apresentada, a crise planetária das finanças parece-se com um desses maus filmes produzidos pela fábrica de sucessos pré-fabricados que chamamos hoje de cinema. Nada falta, incluindo as aparições que aterrorizam: é impossível impedir a sexta-feira 13, tudo desmorona, tudo vai desmoronar...
Mas a esperança permanece. Diante da cena, aterrorizados e concentrados como num filme-catástrofe, a pequena quadrilha de poderosos, os bombeiros do fogo monetário, os Sarkozy, Paulson, Merkel, Brown e outros Trichet, gastam milhares de milhões. "Salvar os bancos!". Esse nobre grito humanista e democrático surge de todas as gargantas políticas e mediáticas. Para os actores principais do filme, ou seja, os ricos, os seus servidores, os seus parasitas e todos aqueles que os incensam, um final feliz, eu creio, eu sinto, é inevitável, levando em conta o que eles são hoje e o mundo, e os políticos que os cercam.
Voltemo-nos antes para os espectadores desse espectáculo, a turba atónita que ouve como uma algazarra longínqua os gritos desesperados dos banqueiros, imagina os finais de semana fatigantes da gloriosa pequena tropa de chefes de governo, vê passar diante dos seus olhos cifras tão gigantescas como obscuras, e compara tudo isso mecanicamente com os recursos com os quais vive, ou mesmo, para uma parte muito considerável da humanidade, a pura e simples falta de recursos que forma o fundo amargo e corajoso da sua vida. Eu digo que aí está o real, ao qual não teremos acesso enquanto não nos desviarmos da tela do espectáculo para considerar a massa invisível daqueles para quem o filme-catástrofe, num inesperado final cor-de-rosa (Sarkozy beija Merkel, e todo mundo chora de alegria), jamais passou de um teatro de sombras.
Nas últimas semanas, fala-se frequentemente da "economia real" (a produção de bens). E opõe-se a ela a "economia irreal" (a especulação), de onde viria todo o mal, visto que seus agentes teriam-se tornado "irresponsáveis", "irracionais" e "predadores". Essa distinção é, evidentemente, absurda. O capitalismo financeiro é, há cinco séculos, uma peça central do capitalismo em geral. Quanto aos proprietários e animadores desse sistema, eles só são, por definição, responsáveis pelos lucros, a sua "racionalidade" é medida pelos ganhos, e não só são predadores, como têm o dever de sê-lo.
Não há, portanto, nada mais real na produção capitalista que o seu estágio mercantil ou o seu compartimento especulativo. O retorno ao real não seria, assim, o movimento que conduz da má especulação "irracional" à saudável produção. Esse retorno é o retorno à vida, imediata e reflectida, de todos aqueles que habitam este mundo. É a partir dessa posição que se pode observar sem fraquejar o capitalismo e o filme-catástrofe que ele nos apresenta nestes dias. O real não é o filme, mas a sala.
O que vemos, assim, retornando? Vemos coisas simples e conhecidas de longa data: o capitalismo não é nada além de um banditismo, irracional na sua essência e devastador no seu futuro. Ele sempre fez pagar, para ter algumas curtas décadas de prosperidade selváticamente desiguais, com crises ou o desaparecimento de quantidades astronómicas de valores, com expedições punitivas sanguinárias em todas as zonas consideradas por ele como estratégicas ou ameaçadas, com guerras mundiais por meio das quais sua saúde é refeita.
Deixemos ao filme-crise, assim revisto, a sua força didática. Podemos ainda ousar, face à vida das pessoas que o assistem, nos vangloriar de um sistema que remete a organização da vida colectiva às pulsões mais baixas, à cobiça, à rivalidade, ao egoísmo? Fazer o elogio de uma "democracia" onde os dirigentes são tão impunemente os empregados da apropriação financeira privada que espantaria o próprio Marx, que já qualificava esses governantes, há 160 anos, como funcionários do poder do capital? Afirmar que é impossível tapar o buraco da segurança social, mas que devemos tapar, com biliões, o buraco dos bancos?
A única coisa que podemos desejar nesta questão é que descubramos o poder didático nas lições que podem ser tiradas para os povos, e não para os banqueiros, para os governos que os servem e para os jornais que servem aos governantes, em toda essa cena sombria. Eu vejo dois níveis articulados deste retorno do real. O primeiro é claramente político. Como o filme tem mostrado, o fetiche "democrático" não passa de um serviço solícito aos bancos. O seu verdadeiro nome, o seu nome técnico, como proponho há muito tempo, é: capital-parlamentarismo. Convém, pois, como múltiplas experiências começaram a fazer nos últimos vinte anos, organizar uma política de natureza diferente. Ela é e estará - por muito tempo ainda, sem dúvida - distante do poder do Estado, mas pouco importa. Ela começa, na base do real, pela aliança prática das pessoas mais imediatamente disponíveis para inventá-la: os novos trabalhadores vindos da África ou de outros lugares, e os intelectuais herdeiros das batalhas políticas das últimas décadas.
Ela vai ampliar-se em função do que houver a fazer, ponto por ponto. Não manterá nenhuma espécie de relação orgânica com os partidos existentes e o sistema, eleitoral e institucional, que os mantém vivos. Ela inventará a nova disciplina daqueles que não têm nada, a sua capacidade política, a nova ideia do que seria sua vitória.
O segundo nível é ideológico. É preciso inverter o velho veredicto segundo o qual estaríamos vivendo "o fim das ideologias". Vemos hoje, muito claramente, que essa pretensão não tem outra realidade do que a expressa pela palavra de ordem "salvemos os bancos". Nada é mais importante que reencontrar a paixão das ideias e pôr ao mundo tal qual é uma hipótese geral, a certeza antecipada de um outro curso de acontecimentos totalmente distinto. Ao espectáculo maléfico do capitalismo, nós opomos o real dos povos, da existência de todos no movimento próprio das ideias. A motivação de uma emancipação da humanidade não perdeu em nada a sua força. A palavra "comunismo", que durante muito tempo nomeou essa força, foi certamente aviltada e prostituída.
Mas, hoje, a sua desaparição só serve aos mantenedores da ordem, aos actores febris do filme-catástrofe. Nós iremos ressuscitá-la, na sua nova clareza. Que é também a sua antiga virtude, expressa quando Marx dizia, a propósito de comunismo, que ele "rompia da forma mais radical com as ideias tradicionais" e que fazia surgir "uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos". Ruptura total com o capital-parlamentarismo, política inventada a partir do real popular, soberania da ideia: tudo está aí para nos tirar do filme da crise e remeter-nos à fusão do pensamento vivo e da acção organizada.
Alain Badiou é filósofo, escritor e editor. Artigo publicado no jornal Le Monde (17/10/2008)

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