Pular para o conteúdo principal

Presidente Médici quis revogar AI-5 em 1969

Folha Online

O general Emílio Garrastazu Médici assumiu a Presidência do Brasil em outubro de 1969 disposto a revogar o AI-5, sigla que entrou para a história como o ato institucional que escancarou a ditadura no país.
Médici desistiu da idéia e assumiu uma posição linha-dura tão logo constatou, em consultas informais, que não teria o apoio de importantes aliados.
A cúpula das Forças Armadas achava cedo demais para extinguir o texto que abriu a possibilidade de fechar o Congresso, permitiu intervenção do governo federal nos Estados, institucionalizou a censura e suspendeu o habeas corpus em casos de crimes políticos.
A primeira versão do AI-5, contudo, era muito mais radical. Extinguia o Legislativo em todo país e fechava o Supremo Tribunal Federal. Essa versão foi rechaçada pelo então presidente Arthur da Costa e Silva (1967-1969), que exigiu um texto que não fosse "dose para cavalo" e só aceitou assiná-lo porque temia ser deposto.
O autor dessas revelações, até hoje compartilhadas em detalhes somente com poucos confidentes, é Rondon Pacheco, ex-chefe da Casa Civil do governo Costa e Silva. Aos 89 anos, ele é a única testemunha viva que participou de todo o processo de confecção do AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968.
Com as credenciais de quem redigiu o texto final do ato, ajudou a fazer uma Constituição que facilitaria a revogação do ato em 1969 --mas não foi outorgada porque Costa e Silva adoeceu-- e participou da escolha da segunda chapa presidencial depois do movimento de 1964, Pacheco revelou à Folha bastidores daquele capítulo da história da ditadura brasileira.
"O presidente Costa e Silva me disse isso várias vezes em seus despachos, que ele às vezes não dormia pensando nos problemas do outro dia", recorda Rondon Pacheco, dizendo que Costa e Silva assumiu o governo gerenciando problemas. Havia, segundo Pacheco, uma conspiração sendo tramada pelo ex-governador Carlos Lacerda no Hotel Glória (RJ).
"Não foi um governo tranqüilo, apesar de estar perfeitamente constitucionalizado", diz. Mas afirma que a Constituição de 1967 assustou o autodenominado "governo revolucionário". Para o ex-chefe da Casa Civil, foi a falta de habilidade política que transformou dois curtos discursos do deputado Márcio Moreira Alves -que criticou militares no plenário da Câmara- na maior crise do governo. "Coisa do Márcio, demagogo", avalia Pacheco.
Ofendidos, os militares exigiram a cassação do deputado. Pacheco conta que Costa e Silva acordou uma solução intermediária para aprovar uma licença para o deputado. "Se tivesse havido a punição conforme já estava combinado, não teria havido nada [o AI-5]", sustenta. Mas o ministro Gama e Silva (Justiça) decidiu, à revelia, trocar os integrantes da comissão que analisava o caso para aprovar a cassação.
O ministro só não foi demitido porque era amigo do presidente, segundo Pacheco. A cassação, contudo, foi rejeitada pelo plenário da Câmara por 216 votos a 141, conforme ata da sessão de 12 de dezembro de 1968. Diante da derrota no Congresso, as condições para um golpe dentro do golpe estavam postas, na visão do governo.
O presidente tomou a decisão de "nada decidir" naquela noite de quinta-feira. Nem sequer recebeu companheiros de farda, que já tramavam uma proposta para reforçar o poder das Forças. Convocou reunião para as 11h. Na manhã daquela sexta-feira 13, começava a fase mais dura da ditadura brasileira.
"Tudo foi decidido pela manhã. Quando foi para o Conselho [Nacional] de Segurança, o problema já tinha sofrido um despacho saneador do presidente", recorda o ex-ministro. Foi convocado para a reunião um seleto grupo que ouviu do presidente a intenção de fechar o Congresso e editar um ato semelhante ao AI-1, que permitiu a cassação e suspensão dos direitos políticos de quem era contra o sistema.
"Gama e Silva estava muito agitado. Isso eu notei. Ele chegou, sentou na cadeirinha do ministro da Justiça e disse: "O ato, presidente, está pronto". Ele estava certo que ia fazer o presidente engolir o ato", revela Pacheco. A primeira versão do AI-5 proposta "era um ato terrível", nas palavras de Pacheco.
Demitia todos os ministros do Supremo, dissolvia o Congresso e todas as Assembléias Legislativas. A intervenção federal seria no país inteiro, inclusive com a indicação de todos os prefeitos. Rondon Pacheco guarda na memória detalhes daquela primeira reunião do dia no Palácio das Laranjeiras, mas revela ojeriza à versão ultra-radical do AI-5 lida por Gama e Silva.
Diz que não quer nem saber que fim levou aqueles papéis. Antes de vetada pelo presidente, a primeira versão dividiu os seis integrantes da reunião. A nova proposta foi apresentada no início daquela tarde.
Caberia a Rondon Pacheco elaborar o texto final. "O Gama e Silva levou um projeto e eu fui expurgando". Enquanto fechavam o texto, chegaram os membros do Conselho Nacional de Segurança para a reunião das 17h, que sacramentou o AI-5. O vice-presidente Pedro Aleixo, segundo Pacheco, trouxe uma proposta para decretar o estado de sítio e uma carta de renúncia, se Costa e Silva desistisse.
Costa e Silva permaneceu no poder, mas elaborou um plano: a outorga de uma nova Constituição permitiria acabar com o AI-5 no dia 7 de setembro de 1969. Mas adoeceu e foi afastado do cargo dez dias antes de executar o cronograma. O presidente que sucedeu Costa e Silva também pensou em pôr fim ao ato, afirma Pacheco: "O Médici quis revogar o ato e não teve apoio. O Exército achava cedo".
Escalado por Médici para presidir a Arena e depois governar Minas, Pacheco conta que o presidente recém-empossado fez consultas sobre o assunto. "Médici achou que talvez fosse melhor fazer o teste: revogar o AI-5 para ver se eles paravam com a agitação." Mas o teste nunca foi feito.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os Farrapos dos olhos azuis

Cláudio Ribeiro - Demitri Túlio, do Jornal O Povo, de Fortaleza A íris clara, azulzíssima em muitos deles, é a digital do povo Farrapo. Também é da identidade a pele branca avermelhada, carimbada pelo sol forte que não cessa em Sobral. Isso mais entre os que vivem na zona rural. Gostam de exaltar o sobrenome. É forte. Farrapo não é apelido. Não são uma etnia, mas são tratados assim. São “da raça dos Farrapos”, como nos disse quem os indicou a procurá-los. Os Farrapos têm história a ser contada. Praticaram a endogamia por muito tempo. Casamentos em família, entre primos, mais gente do olho azul de céu que foi nascendo e esticando a linhagem. Sempre gostaram de negociar, trocar coisa velha. São um pouco reclusos. Vivem sob reminiscências de judaísmo. Há estudo disso, mas muito ainda a ser (re)descoberto. Os Farrapos são citados, por exemplo, no livro do padre João Mendes Lira, Presença dos Judeus em Sobral e Circunvizinhanças e a Dinamização da Economia Sobralense em Função do Capital Ju...

Erros judiciários: Caso Mignonette - Estado de necessidade

A 5 de Julho de 1884 naufragou o iate inglês La Mignonette. Depois de vários dias no mar, o imediato, que era o mais jovem de todos, foi morto pelos companheiros, que mais tarde alegaram estado de necessidade perante o júri. Sustentaram que não teriam sobrevivido caso não se utilizassem do cadáver para matar a fome. O júri deu um "veredicto especial", reconhecendo apenas a matéria de fato, mas deixando a questão jurídica para que a corte superior decidisse. Lord Coleridge, um dos juízes superiores, disse, entre outras considerações, o seguinte: Conservar a própria vida é, falando em geral, um dever: mas sacrificá-la pode ser o mais claro e alto dever. A necessidade moral impõe deveres dirigidos não à conservação mas ao sacrifício da sua vida pelos outros. Não é justo dizer que há uma incondicionada e ilimitada necessidade de conservar a própria vida. Necesse est ut eam, non ut viram (é necessário que eu caminhe, não que eu viva) disse Lord Bacon. Quem deve julgar o estado de ...

Astronomia: Milhares de cometas escuros podem colidir com a Terra

Da Lusa - Agência de Notícias de Portugal Londres, (Lusa) - Milhares de cometas que circulam no sistema solar podem ser um perigo para a Terra, por serem indetectáveis, o que dificulta a antecipação de um eventual impacto, alertaram quarta-feira vários astrónomos britânicos. São cerca de três mil os cometas que circulam no sistema solar e apenas 25 podem ser avistados a partir da Terra, lê-se no artigo da revista "New Scientist", assinado por Bill Napier, da Universidade de Cardiff, e por David Asher, astrónomo do Observatório da Irlanda do Norte. "Devemos alertar para o perigo invisível mas significativo que são os cometas escuros", dizem os astronómos, explicando que um cometa fica escuro quando perde a cola brilhante. Desprovido desta substância, "o trajecto de um cometa que esteja em rota de colisão com o planeta Terra pode passar despercebido ao telescópio", afirmam Napier e Asher. Nos últimos séculos, o cometa de que há registo de ter passado mais pr...