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Dois presidentes e o caminho para a integração


Jorge Viana

Quando assumi o governo do Acre, em janeiro de 1999, me preocupava que o debate sobre a integração regional a partir da tríplice fronteira Brasil, Bolívia e Peru não era feito nesta própria fronteira. Ou seja, a discussão, pelo menos do lado de cá do Brasil, passava longe dos mais interessados no assunto, os brasileiros residentes nesta vasta fronteira amazônica, incluindo povos indígenas e populações tradicionais.

Um gracioso incidente dá a medida da distância então existente entre a visão do poder federal e a sociedade local em relação ao tema. Em 1986, José Sarney era presidente do Brasil e veio a Rio Branco encontrar Alan García, que cumpria seu primeiro mandato na presidência do Peru. Hospedados no Hotel Pinheiro, o barulho da multidão chamou a atenção do peruano. Acreditando ser uma manifestação de apoio e acolhimento, Garcia saiu à sacada do seu apartamento para saudar os brasileiros e voltou assustado, surpreendido pelo coro popular: "Fora Sarney! Fora Sarney! Fora Sarney!".


Naquela ocasião, o povo acreano não via a presença de Sarney como uma deferência ao nosso Estado, mas uma mera coincidência pela necessidade de se promover o encontro de presidentes na fronteira entre os dois países.

Iniciativas como o encontro presidencial de 1986 tiveram sua importância no fortalecimento das relações entre Brasil e Peru. Mas a verdade é que, a partir de 1999, o esforço pela integração regional ganhou novo ritmo e avançou concretamente porque incluiu nesta agenda a representação dos brasileiros da fronteira. E não é exagero afirmar que isto acontece graças ao papel do Acre, que, enxergando na integração o melhor caminho para a implantação de um modelo de desenvolvimento regional, ousou mobilizar a sociedade e provocar os governos brasileiro e dos países vizinhos.

O Acre desempenhou uma mediação fundamental para que, sob as presidências de Fernando Henrique Cardoso e Alexandre Toledo, Brasil e Peru iniciassem a construção da Rodovia do Pacífico. Ou Rodovia Interoceânica, como preferem os peruanos. Dez dias antes de deixar a presidência, Fernando Henrique entregou a etapa brasileira desta estrada em ato conjunto com Toledo, na pequena cidade de Assis Brasil, onde o rio Acre separa e une Brasil, Bolívia e Peru.

O presidente Lula, um velho e bom conhecedor do Acre, até iniciou uma das suas Caravanas da Cidadania por Assis Brasil, isso quando ali só se chegava vencendo trilhas e dependendo dos períodos de chuva. Então não foi surpresa que, comprometido com a idéia da integração latino-americana, garantisse a sequência da Estrada do Pacífico, possibilitando a construção da ponte Brasil/Peru sobre o rio Acre e as condições para o governo peruano construir a estrada desde a fronteira até seus portos no Oceano Pacífico.

Na próxima terça-feira, 28 de abril, um novo encontro entre os presidentes do Brasil e Peru acontece em Rio Branco. Lula e Alan García participam de um Fórum Empresarial e ajustam acordos bilaterais, afirmando os novos passos para a integração. E certamente definirão a data de inauguração, no próximo ano, da Estrada do Pacífico, já pronta do lado brasileiro e em conclusão na etapa peruana.

Esta estrada interoceânica, como bem chamam os peruanos, cria uma nova geografia econômica, pois interliga definitivamente os portos peruanos no Pacífico com os portos brasileiros no Atlântico. E também, com a interseção da BR-174, no Amazonas e Roraima, com os portos venezuelanos no Caribe.

A partir daí, abrem-se possibilidades fantásticas de um novo caminho de interação da economia brasileira com o mundo, especialmente com os mercados asiáticos. Isso é solução e problema. Porque, na Amazônia, estrada sempre representa risco para as populações tradicionais e para a floresta. Mas também é verdade que a integração rodoviária pode possibilitar a implementação mais rápida de um novo modelo de desenvolvimento, que tem que ser sustentável. Para isso, é necessário tirar lições dos grandes equívocos do passado, buscar a inclusão das populações locais e a integração da Amazônia do Brasil e de países vizinhos.

Cabe ao Brasil, pela importância da sua economia e por sua liderança na América Latina, estimular experiências que valorizem o conhecimento e a conservação da biodiversidade, tendo a floresta como um ativo que, usado de forma inteligente, seja a base de uma nova economia regional amazônica.

Finalmente, a experiência vivida no Acre me leva a pedir mais um cuidado. Os presidentes Lula e García não podem deixar que a Estrada do Pacífico seja condenada a se tornar um mero corredor de exportações. Temos que ter o compromisso socioambiental de transformá-la no verdadeiro caminho da integração.

JORGE VIANA foi prefeito de Rio Branco (1993/1996) e governador do Acre (1999/2006).
E-mail: jorgeviana.ac@gmail.com

Fonte: artigo publicado originalmente no jornal O Globo.

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