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A ação penal nos crimes contra a liberdade sexual


Guilherme de Souza Nucci

A nova redação do art. 225, dada pela Lei 12.015/2009, prevê, como regra, a ação penal pública condicionada à representação da vítima (art. 225, caput), substituindo a anterior disposição, que privilegiava a ação penal privada. A única exceção, estipulando-se ação penal pública incondicionada, restou ao âmbito da vítima menor de 18 anos ou pessoa vulnerável (art. 225, parágrafo único).

A primeira omissão grave da novel legislação sobre crimes sexuais concentra-se no crime qualificado pelo resultado, particularmente o estupro com resultado lesão grave ou morte (art. 213, §§ 1o e 2o, CP), onde inexiste previsão para a ação penal pública incondicionada. Dessa forma, seguindo-se fielmente o disposto no art. 225, seria a ação pública condicionada à representação da vítima, o que, por si só, representa um contra-senso, em especial, se houve morte.

A justificativa para o equívoco concentra-se na anterior redação do art. 225 e na existência do art. 223, hoje revogado. Antes da reforma, o art. 225 mencionava caber ação privada nos crimes definidos nos capítulos anteriores, ou seja, capítulos I, II e III. No caso do art. 223, onde estavam previstas as formas qualificadas pelo resultado (lesão grave e morte), situava-se no capítulo IV. Dessa forma, a ação penal era pública incondicionada, conforme a regra geral do art. 100, caput, do Código Penal.

Revogado o art. 223 e deslocadas as figuras qualificadas pelo resultado para o tipo penal do estupro, o que é tecnicamente mais adequado, deixou-se de prever, expressamente, como exceção, no art. 225, parágrafo único, ser a ação pública incondicionada.

A solução para o impasse existe e concentra-se no art. 101 do Código Penal: "quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do Ministério Público". Portanto, levando-se em consideração que a lesão grave e o homicídio são elementos do tipo penal do art. 213, ainda que como resultados qualificadores, situando-se nos §§ 1o e 2o, além de serem delitos autônomos, cuja ação é pública incondicionada, torna-se imprescindível considerar o estupro seguido de lesão grave ou morte da vítima um crime de ação pública incondicionada.

Naturalmente, quando comentávamos o art. 101 (Código Penal comentado e Manual de direito penal), dizíamos ser ele inútil, pois todos os tipos penais acabavam por trazer, de um modo ou de outro, a espécie de ação penal cabível. Somos obrigados a rever essa posição, pois nunca seremos suficientemente preparados para entender e assimilar todos os erros legislativos na área penal. A omissão trazida pela Lei 12.015/2009 terminou por reavivar o art. 101 do Código Penal, permitindo-se corrigir a distorção gerada quanto ao estupro seguido de lesão grave ou morte.

Outro ponto que nos soa interessante é o reflexo da nova redação do art. 225 em relação à Súmula 608 do STF: "No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada". Editada em época pretérita, valendo-se de política criminal, cuja finalidade era a proteção à mulher, que, embora estuprada com violência, via-se constrangida em registrar a ocorrência, preferindo calar-se, hoje não mais se justifica essa tutela.

Ademais, as súmulas não podem dispor contra a lei, mormente quando esta é posterior e traz inovações. A partir de 7 de agosto de 2009, a ação penal, nos crimes contra a liberdade sexual, onde está, obviamente, previsto o estupro, é pública, mas condicionada à representação da vítima. Alcançou-se o meio-termo: nem ação privada, nem pública incondicionada.

Cabe à pessoa (homem ou mulher) vítima de estupro deliberar sobre a iniciativa em oferecer representação, permitindo a atuação do Ministério Público. Seria por demais desigual a mantença da referida Súmula 608, que trata somente da mulher e do uso de violência, quando atualmente se pode incluir no cenário do estupro também o homem. Somente para argumentar, mantida a súmula, o homem estuprado com violência poderia optar entre representar ou não; a mulher estuprada com violência não teria direito de escolha, pois a ação seria pública incondicionada. Nenhum argumento soa-nos capaz de digerir esse tratamento desigual.

Finalmente, considerando-se que a Lei 12.015/2009 trouxe regra processual mais rígida, sob determinado aspecto, de conteúdo material, não pode retroagir para prejudicar o réu. Portanto, crimes contra a liberdade sexual, ocorridos antes de 7 de agosto de 2009, continuam a comportar ação penal privada. Entretanto, as ações públicas incondicionadas, movidas com base na Súmula 608, hoje inaplicável, devem ser sobrestadas imediatamente, a fim de colher a concordância da vítima. Nessa parte, a Lei 12.015/2009 deve retroagir, pois benéfica ao acusado.

Publicado no Jornal Carta Forense, quarta-feira, 4 de novembro de 2009 .

Guilherme de Souza Nucci é Livre-docente em Direito Penal pela PUC-SP. Doutor e Mestre em Processo Penal pela PUC-SP. Juiz de Direito em São Paulo e autor de diversas obras

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