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Estupro e atentado violento ao pudor: crime único ou concurso material?

Damásio de Jesus

Na legislação reformada, caso o sujeito praticasse, antes da conjunção carnal, atos libidinosos preliminares, havia a sua absorção, caracterizando-se apenas o crime de estupro (revogado art. 213 do CP). Diferentemente, entretanto, era a subsunção legal quando cometia, além do estupro, outros atos libidinosos que não precediam nem eram dirigidos à cópula normal, como o coito anal. Estávamos em face de um concurso de crimes entre o estupro e o atentado violento ao pudor (art. 214). Assim, se o ato libidinoso aparecia destacado do contexto que levaria à cópula normal, havia concurso material entre os dois crimes e não absorção de um pelo outro. Observava-se que, na hipótese de o atentado ser constituído de vários atos, os quais eram libidinosos por si mesmos, com exceção da conjunção carnal, não estávamos diante de vários crimes e, sim, de infração única. Dessa forma, aquele que despia uma jovem, apalpando-a nas partes íntimas, e depois a obrigava a praticar ato libidinoso diverso, excluída a cópula carnal, cometia somente um crime de atentado violento ao pudor.

A Lei n. 12.015/2009, na redação do art. 213, agora, assim descreve o estupro:

"Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso."

Na doutrina, formaram-se duas posições a respeito da natureza do tipo e da questão de haver crime único ou concurso material no caso de o sujeito, no mesmo contexto de fato, constranger a vítima à conjunção carnal e à pratica de ato libidinoso diverso:

1.ª) Trata-se de figura típica mista de formulação alternativa, de maneira que, na hipótese de o sujeito praticar com a vítima, no mesmo contexto de fato, conjunção carnal e outro ato libidinoso, há um só crime (estupro). Assim, se o autor obriga a vítima à felação e à conjunção carnal, só responde por um delito.

2.ª) Cuida-se de uma figura mista cumulativa, de modo que, se o sujeito ativo, ainda que no mesmo contexto de conduta, constrange a vítima à conjunção carnal e à prática de ato de libidinagem diferente, concretiza o tipo duas vezes, conduzindo o fato ao concurso material de crimes.

As duas correntes, sob o mesmo fundamento, também apresentam soluções em face do crime continuado.

Estamos, sinceramente, convencidos de que, na questão discutida, o autor só responde por um crime de estupro. Além disso, acreditamos que a hipótese não é de figura típica de formulação alternativa ou cumulativa.

De modo geral, de acordo com o princípio da alternatividade, a norma penal que prevê vários fatos, alternativamente, como modalidades de um mesmo crime, só é aplicável uma vez, ainda quando são cometidos, pelo mesmo sujeito, sucessivamente. Ocorre nos crimes de ação múltipla ou conteúdo variado, como a participação em suicídio, o comércio clandestino ou a facilitação de uso de drogas, o escrito ou objeto obsceno, a supressão de documentos etc. Assim, se o agente induz, instiga e, depois, auxilia alguém a suicidar-se, só responde por um crime, o de participação em suicídio (art. 122 do CP). E notem que, nesses casos, os tipos apresentam mais de um verbo.

Enquanto delitos de forma livre são os que podem ser cometidos por meio de qualquer conduta que importe determinado resultado, como o homicídio, crimes de formulação típica vinculada são aqueles em que a lei descreve a atividade de modo particularizado. Exemplo: crime do art. 284 do CP - curandeirismo. Nesse caso, o legislador, após definir, de maneira genérica, a conduta, especifica a atividade (incisos da disposição).

A formulação típica vinculada ou casuística pode ser:

a) cumulativa;

b) alternativa.

O crime é de forma vinculada cumulativa quando o tipo prevê várias ações do sujeito, como ocorre no caso do crime de sonegação ou destruição de correspondência (art. 40 da Lei n. 6.538, de 22 de junho de 1978), antes descrito no revogado art. 151 do Código Penal (CP).

O crime é de forma vinculada alternativa quando a descrição típica prevê mais de um núcleo (verbo), empregando a disjuntiva "ou", como acontece nos arts. 150, caput, 160, 161, 164 etc. do CP. Na violação de domicílio, há dois verbos: entrar e permanecer (art. 150). Quem, indevidamente, entra em casa alheia e nela permanece só responde por um crime. Na extorsão indireta (art. 160 do CP), quem, no mesmo contexto, exige e, depois, recebe o objeto material, só comete um crime, embora haja dois núcleos. Quem importa, depois tem em depósito, expõe à venda e vende droga ilícita, sem autorização legal, só transgride uma vez a proibição penal do art. 33 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006.

Nota-se que, nos delitos de forma vinculada, sejam cumulativos ou alternativos, há mais de um núcleo. No estupro, entretanto, só existe um verbo: constranger, de maneira que não estamos diante de um tipo misto de formulação vinculada cumulativa nem alternativa. Essa qualificação doutrinária não se presta ao deslinde da questão em debate. No crime do art. 213, em sua nova roupagem, existe uma só conduta descrita como centro do tipo, a do verbo constranger, não tendo relevância, no tema da tipicidade, saber se o sujeito realizou este ou aquele ato de libidinagem.

Na definição do estupro, encontramos o gênero (atos libidinosos) e uma espécie deles (conjunção carnal). Para a lei, em termos abstratos, conjunção carnal obrigada tem o mesmo valor negativo de qualquer outro ato libidinoso. O tema terá importância em momento posterior, quando, para a aplicação da pena, o Juiz deverá considerar o desvalor da ação, o grau de lesão jurídica à dignidade sexual.

No crime de perigo de contágio venéreo (art. 130 do CP), se o autor, no mesmo fato, expõe alguém, por meio de relações sexuais (espécie) ou de qualquer outro ato libidinoso (gênero), a contágio de moléstia venérea, comete somente uma violação penal.

No constrangimento ilegal (art. 146 do CP), se o sujeito obriga a vítima a não fazer o que a lei permite e a fazer o que ela não manda, no mesmo contexto de fato, só pratica um crime.

Na ameaça (art. 147), se o autor prenuncia à vítima mal injusto e grave oralmente, via bilhete e meio simbólico, no mesmo contexto, comete somente um crime.

Na extorsão (art. 158), se o constrangimento da vítima, mediante violência real ou moral, ocorre no sentido de ela fazer, deixar de fazer ou tolerar que se faça alguma coisa, no mesmo contexto, há um só crime.

Entender, na pergunta proposta, que existem dois crimes, é concluir que o sujeito cometeu um delito de natureza sexual especificado e outro não especificado. Especificado, a conjunção carnal; não especificado, o outro ato libidinoso diverso da cópula. Não era assim antes da lei nova, pois, embora o verbo fosse o mesmo constranger, configurava núcleo de dois tipos penais incriminadores (arts. 213 e 214).

Em suma, na questão em debate, entendemos que existe apenas um crime de estupro (primeira corrente), embora por outros fundamentos.

Damásio Evangelista de Jesus - Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo - Aposentado. Doutor "Honoris Causa" em Direito pela Universidade de Estudos de Salerno - Itália. Presidente e Professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Autor de diversas obras.


Jornal Carta Forense, quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

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