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Crônica de Rubem Alves: Sobre ciência e sapiência


Muitas pessoas não gostam do que escrevo. Dizem que o que eu faço não é ciência; é literatura. É verdade. Faz tempo que me mudei da caixa de ferramentas para a caixa dos brinquedos. O que me aborrece é que esses que não gostam do que escrevo pensam que somente a ciência tem dignidade acadêmica. Houve mesmo o caso de uma candidata ao mestrado que teve seu projeto recusado por me citar demais e por propor um assunto que não era científico. Psicóloga e pedagoga ela sabia por experiência própria do poder do olhar. Há tantos olhares diferentes! Há o olhar de desprezo, de admiração, de ternura, de ódio, de vergonha, de alegria... A mãe encosta o filhinho na parede e, a um metro de distância, lhe estende os braços e diz sorrindo: “Vem”. Encorajada pelo olhar a criança, que ainda não sabe andar, dá seus primeiros passos. Há olhares que dão coragem. E há olhares que destroem. Aquele olhar terrível da professora que olha para a criança de um certo jeito, sem nada dizer. Mas a criança entende o que o seu olhar está dizendo: “Como você é burra”... Há olhares que emburrecem. Voltando à metáfora do pênis, há olhares que o tornam impotente, tanto no sentido literal quanto no sentido metafórico. Acho que era isso que a Adélia tinha em mente quando escreveu maliciosamente: “E o meu lábio zombeteiro faz a lança dele refluir...”
O olhar é real. É real porque produz efeitos reais. O olho é também real. Sobre ele se pode ter conhecimento científico. Há uma ciência dos olhos. Há uma especialidade médica que se dedica a eles: a oftalmologia. Mas, por mais que procuremos nos tratados de oftalmologia referências ao olhar, não encontraremos nada. O olhar não é objeto de conhecimento científico. Nem tudo o que é real pode ser pescado com as redes metodológicas da ciência. Há objetos que escapam pelos buracos de suas malhas. Será possível fazer uma ciência dos olhares? Tratá-los estatisticamente? Não tem jeito. Aí a proposta de uma tese sobre o olhar foi rejeitada sob a justa alegação de que não era científica. E não era mesmo. Mas o fato é que os olhares são reais! O estudo dos olhos é tarefa da ciência. E por isso eu sou agradecido. Nesse momento estou usando óculos para escrever. Sem eles eu só veria borrões. Mas eu me dedico ao olhar, para que meus olhos sejam sábios. O olhar é uma musica que os olhos tocam. Coisa de poeta... São os poetas que falam sobre os olhares. ( Eu escrevi “ são os poetas que sabem sobre os olhares” – mas logo corrigi. Todo mundo sabe sobre os olhares. Todo mundo observa atentamente os olhares porque são eles, e não os globos oculares, que sinalizam a vida e especialmente o amor... Mas só os poetas sabem falar sobre eles). Escrevo para mudar olhares. Isso não é ciência. É arte. Há olhos perfeitos que são armas mortíferas. Jesus se referiu a esses olhos e sugeriu que deveriam ser arrancados. Os olhos, eles mesmos, são estúpidos. Eles não têm o poder para discriminar as coisas dignas de serem vistas das coisas não dignas de serem vistas. Para eles tanto faz ver um programa idiota de televisão quando uma tela de Vermeer. A capacidade de discriminar não pertence aos olhos. Pertence ao olhar. Mas isso exige uma luz interior.
Se os olhos não serviram como metáforas, falarei sobre pianos. Mais precisamente, sobre os pianos Steinway, os mais perfeitos, que estão nas grandes salas de concerto do mundo. Os pianos Steinway são produzidos de forma absolutamente rigorosa e científica. Tudo neles tem de ter a medida exata. Todos têm de ser absolutamente iguais, para que o pianista não estranhe. Mas um piano, em si mesmo, é estúpido. Falta-lhes o poder de discriminação. Os pianos obedecem tanto a um toque de macaco, de um louco ou do Nelson Freire. Os pianos não são fins em si mesmos. São ferramentas. São construídos para tornar possível a beleza da música. Mas a beleza não é um objeto de conhecimento científico. Ninguém pode ser convencido a gostar de Bach por meio de raciocínios científicos. Não me consta que nenhum dos especialistas em construção de pianos da fábrica Steinway jamais tenha dado um concerto. Ciência eles têm. Mas falta-lhes a arte. Para que o piano produza beleza há os pianistas. Mas os pianistas nada sabem sobre ciência da construção dos pianos. O que eles sabem é tocar piano, coisa que não é científica... Os fabricantes de piano moram na caixa de ferramentas. Os pianistas moram na caixa de brinquedos.
A diferença está entre “ciência” e “sapiência”. Os teólogos medievais diziam que a ciência era uma serva da teologia. Parodiando eu digo que a ciência é uma serva da sapiência. A ciência é fogo que aumenta o poder dos homens sobre o mundo. A sapiência usa o fogo da ciência para transformar o mundo em comida, objeto de deleite. Sábio é aquele que degusta. Mas se o cozinheiro só conhecer os saberes que moram na caixa de ferramentas é possível que o excesso de fogo queime a comida e, eventualmente, o próprio cozinheiro...

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