Por Márcio Chaer
O espaço que o Judiciário tem ocupado na vida do país encontra correspondência na devassa que a sociedade tem feito na Justiça. Se até poucos anos atrás o presidente do Supremo Tribunal Federal era menos conhecido que o pior jogador do pior time da primeira divisão, hoje há sessões da TV Justiça que concorrem com a novela das oito.
O amadurecimento do país e o interminável aprendizado logo vai mostrar a importância do Superior Tribunal de Justiça, a casa onde se decide as regras do cotidiano dos brasileiros. Assim como as construções faraônicas chamam mais atenção que obras de saneamento básico, por serem subterrâneas, o STJ constrói o certo e o errado nas relações entre o marido e a mulher, a empresa e o consumidor, o fisco e o contribuinte, o inquilino e o senhorio, o banco e o correntista, o segurado e a seguradora. Nada que concorra, no noticiário, com as denúncias dos mensalões petista e tucano. Mas, certamente, muito mais importante para o brasileiro.
A entrevista aqui transcrita mostra o pensamento de um juiz: o presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha. Nordestino habilidoso, conhecido pelo carinho que dedica à sua família e pela capacidade de solucionar problemas complexos, é pacífico e cordato. Mas o homem vira uma fera quando se duvida da boa fé do juiz brasileiro. Irritação maior ele só mostra quando topa com dois tipos de juízes, definidos por ele: o desonesto e o covarde.
Na conversa franca que se segue, o cearense Cesar Asfor Rocha enfrentou as questões mais delicadas e nervosas como quem toma um café na esquina. Por que a Justiça sempre foi acusada de ser patronal e governista? Ele responde: ora, porque sempre foi mesmo. Mas com uma ressalva. Não apenas a Justiça, mas também a sociedade mostrava e impunha essa vocação. Isso não é mais assim, garante ele. Se o juiz é vulnerável à pressão da opinião pública? “Mais até do que se imagina”, afirma. E isso não é necessariamente ruim, acrescenta.
Com frontalidade, enfrenta outra polêmica: que chances têm as pessoas demonizadas pela imprensa, como Daniel Dantas, o casal Nardoni ou o juiz Nicolau. “A consciência do magistrado”, reponde ele, que admite o conluio entre a sede desmesurada de Justiça da população, a imprensa e o dueto composto pela polícia e Ministério Público — principais fornecedores de notícias de impacto, mas nem sempre verdadeiras. “O magistrado covarde é tão nefasto quanto um magistrado desonesto”, reage o ministro. Com a mesma coragem, Asfor Rocha atribui a Gilmar Mendes, seu colega no STF, o mérito de ter estancado a escalada irracional que colocava delegados inflamados, procuradores e juízes de primeiro grau no governo do país.
Sem se poupar de azedumes periféricos, Asfor Rocha entrega nesta entrevista os tribunais que resistem aos tempos modernos e às sumulas do STJ: Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, coadjuvados pelo Rio de Janeiro. Uma prática nada desprezível para a cultura nacional. Os tribunais gastam cerca de R$ 20 milhões por ano só para mandar, pelo correio, os recursos para o STJ. São Paulo gasta perto de R$ 5 milhões. A digitalização dos processos paulistas (que o próprio STJ se dispõe a bancar) custaria menos de R$ 960 mil. Restam poucas dúvidas nessa discussão.
Leia a entrevista
ConJur — O economista americano Albert Fishlow defende a tese de que a estabilidade política e econômica do Brasil, não foi conduzida pelos políticos, mas pelo Judiciário e pelo Ministério Público. O advogado Oscar Vilhena entende que o desenvolvimento econômico, político e ambiental brasileiro está nas mãos dos operadores do Direito, que são as pessoas que constroem as regras que possibilitam essa evolução. Como é que o senhor vê essas interpretações?
Asfor Rocha — Não é só o Judiciário brasileiro que está em alta, é o Judiciário no mundo. Já tivemos o século do Executivo e o século do Legislativo. Este é o século do Judiciário. No caso brasileiro, o Judiciário está sendo mais notado, porque ele era muito calado. Mesmo aqueles que falavam eram muito tímidos. Além de estarmos neste instante de vivência do século do Judiciário, a Justiça está se mostrando e despertando o interesse da imprensa. Desde que o chamado consenso de Washington cuidou de aprimorar a Justiça na crença de dar mais previsibilidade em termos de definições de teses jurídicas, notamos a presença do Judiciário definindo grandes questões. Não se pode cogitar de desenvolvimento que decorra da movimentação de capitais estrangeiros sem que se dê tranqüilidade jurídica à sociedade.
ConJur — No Brasil, para cada dois habitantes corresponde um processo em tramitação na Justiça. Em outros países, a proporção é dessa ordem?
Asfor Rocha — Não, não é assim. Nós tínhamos uma demanda reprimida que explodiu com a redemocratização e com a Constituição de 1988, por dois aspectos. Primeiro, porque a Constituição de 88 reconheceu muitos direitos que antes eram sonegados ao cidadão e à coletividade. Segundo, porque ela tirou o medo que as pessoas tinham de litigar. O patrão antes inibia o empregado de entrar com a reclamação trabalhista. Hoje, o empregado não tem mais medo. O contribuinte não tem mais medo do fisco, o devedor não tem mais medo do credor.
ConJur — Não é porque o brasileiro é um litigioso nato?
Asfor Rocha — Não, não é por isso. É próprio do momento histórico que estamos vivendo. Temos essas duas razões: aumento de direitos da cidadania e a própria consciência desses direitos de cidadania. Essa explosão nos assusta por um lado, porque sobrecarrega a nós magistrados, mas por outro nos conforta, porque é o estuário próprio para compor conflitos em uma sociedade democrática.
ConJur — O senhor falou do século do Judiciário. O Brasil e o Judiciário estão preparados para entrar nesse século? Nossas escolas, por exemplo, preparam bons juízes?
Asfor Rocha — Temos faculdades deficientes, mas temos excelentes faculdades de Direito também. O que ocorre é que ninguém percebe que o Judiciário brasileiro é um dos mais bem estruturados do mundo pelas garantias que os magistrados têm. O juiz brasileiro tem prerrogativas que nenhum juiz do mundo tem. O que ele não tem ainda é preparo para a convivência. E por isso, muitas vezes, ele não é compreendido. Por exemplo, é correto que um jovem recém saído da faculdade, mesmo com algum tempo de experiência forense, possa julgar? Ele estaria já amadurecido para decidir sobre a vida, liberdade, honra, e sobre o patrimônio das pessoas? Então tem certos aspectos que estão sendo hoje objeto de críticas. Não só pela sociedade, mas pela própria magistratura.
ConJur — O homem público está sendo demonizado no Brasil. O professor [J. J. Gomes] Canotilho tem conclamado a que se faça uma revisão dessa maneira de ver o homem público e os políticos em particular. O senhor, como juiz, sente uma certa aversão da opinião pública pelo homem público brasileiro?
Asfor Rocha — Durante um longo período da nossa história o homem público se sentia imune a qualquer crítica. Isso evidentemente conduz a abusos. Esses desvios passaram a ser mais notados. Além disso, houve um aprimoramento muito grande da atividade pública no Brasil. A sociedade brasileira tem se aprimorado, porque ela estava muito distanciada do viés democrático que deveríamos ter há mais tempo. O que era a magistratura há dez anos? O Judiciário era um desconhecido, só aparecia nas páginas do Diário Oficial. Hoje, as questões mais relevantes da Justiça estão sendo levadas ao conhecimento do grande público, debatidas, criticadas e analisadas nas páginas dos jornais.
ConJur — Que efeitos pode ter a relutância do Senado em cumprir uma ordem do STF ?
Asfor Rocha — O episódio mostrou o amadurecimento das instituições. Foi resolvido logo. Mas é evidente que a projeção do episódio prejudicaria a imagem do país e, internamente, seria um péssimo exemplo em dois níveis. Porque se o Senado pode desobedecer ordem judicial, isso vai servir de argumento para quem quiser. E se é possível desobedecer o STF, o que dirá os demais tribunais. Mas logo se percebeu o enorme equívoco do Senado e isso foi resolvido.
ConJur — Mas não há também culpa de uma legislação confusa? Afinal além das fronteiras difusas entre os poderes há também o fato de que a Constituição prevê um rito no Parlamento para a cassação de mandatos.
Asfor Rocha — A legislação em geral e a lei em particular é o resultado do possível. Ela nasce de uma ambiência de conflitos de opinião. Os textos legais são produzidos por conjuntos de pessoas que pensam diferente. Para que haja consenso não se pode explicitar genericamente o que será aplicado a casos particulares. A interpretação — e é para isso que existe o Judiciário — cabe aos juízes.
ConJur — Existe uma ideia estabelecida de se atribuir à lei e à Justiça muitos problemas que na verdade são do Brasil. É o caso, por exemplo, da má distribuição de renda. Quem tem mais dinheiro compra o melhor carro, vai para o melhor hospital, tem as melhores férias, e também contrata o melhor advogado. No entanto, o que se diz é que a Justiça protege o rico. O senhor sente esse tipo de culpa?
Asfor Rocha — É uma visão equivocada, porque o juiz tem que ficar adstrito aos elementos dos autos, ao que está posto na lei. Evidentemente a visão do que está posto na lei depende da ideologia de cada um, das experiências, das frustrações, da felicidade, da tristeza, da alegria que cada juiz tem no momento em que julga. Por isso, um mesmo dispositivo legal tem interpretações díspares dentro de um mesmo colegiado. O juiz busca fundamento da sua decisão na lei. Mas a sua inspiração para julgar não está contida só na lei. Está contida também na sua visão do mundo.
ConJur — Existe uma velha crítica da esquerda, de que a Justiça no Brasil, historicamente, é patronal e governista. Por que?
Asfor Rocha — Porque ela realmente foi. Não só o Judiciário, mas a sociedade como um todo era patronal e governista, era submissa a esses setores. Hoje já não é desse jeito. O Judiciário está mais independente ou menos dependente do governo do que há dez anos. A nomeação dos desembargadores, com a promoção de juízes para os tribunais, hoje se dá por escolha do próprio judiciário. A dependência orçamentária dos tribunais ao executivo ainda existe, mas não na extensão que tinha antes.
ConJur — O Judiciário é contra-majoritário, mas o juiz não. O juiz é um cidadão, que tem parentes, tem amigos, tem vizinhos; ele não vive no tribunal, mas numa cidade, numa rua, numa casa, etc. Como é que o senhor vê o peso da opinião pública nas decisões da Justiça?
Asfor Rocha — É muito forte, mais até do que se imagina. E não é ruim que seja assim. Mas é bom que seja assim por várias razões. Pelo volume de processos que nós temos, muitas vezes não percebemos a importância daquilo que está sendo julgado, a repercussão que tem no plano institucional, político, econômico ou social. E é necessário que a gente perceba. Segundo, porque somos despertados para refletir sobre nossos julgamentos considerando a opinião de quem está de fora. Mas a opinião pública jamais pode ser determinante para a decisão do magistrado.A opinião pública não pode conduzir a decisão do juiz, o juiz não pode decidir com receio de ir de encontro à opinião público.
ConJur — Se a televisão convencer o público que uma pessoa de nome Nicolau, Nardoni ou Daniel Dantas é realmente uma grande inimiga da sociedade, quem vai impedir que essa pessoa seja presa preventivamente?
Asfor Rocha — A consciência do magistrado. O magistrado covarde é tão nefasto quanto um magistrado desonesto. Aliás, eu não sei o que é pior: se é um magistrado desonesto ou se é um magistrado covarde. Para não perder tempo, prefiro dizer que os dois estão no mesmo patamar. O juiz não pode se acovardar para julgar contra as suas convicções apenas pelo receio de desagradar a maioria.
ConJur — A sociedade demanda emoções fortes e em alguns momentos vigora um clima de mata-e-esfola, de linchamento. Quem tem as notícias mais saborosas para atender a essa demanda são a polícia e o Ministério Público, porque cabe a eles as acusações que dão notícia. Diante dessa avalanche, o senhor não sente que a Justiça é pautada pela Polícia e pelo Ministério Público?
Asfor Rocha — Já foi mais. Porque era só o juiz que se achava no dever de ser pautado pelo estrito cumprimento da lei, sobretudo no que diz respeito às garantias constitucionais. A Polícia não atinava que deveria ter esse tipo de preocupação. Ela achava que seu papel era acusar. Em outros tempos, o Ministério Público também tinha disso. Porque é muito fácil acusar. O juiz que vai julgar que cuide de apurar os excesso. Mas a Polícia e o Ministério Público começam a perceber que também têm compromisso com a legalidade. O Ministério Público é cobrado internamente pelos seus próprios integrantes. Por exemplo, quando a denúncia que o delegado ou o membro do Ministério Público leva para o Judiciário, muitas vezes de uma forma escandalosa, não encontra ressonância no julgamento, ele começa a ser mal visto dentro de sua classe. Notamos que esses órgãos têm compromisso de evitar abusos, até mesmo pelo interesse em seu próprio crescimento institucional.
ConJur — Recentemente, o STJ rejeitou denúncia contra três integrantes do TRF de São Paulo por não enxergar qualquer indício que respaldasse as acusações feitas contra eles. Por mais de dois anos, esses juízes se viram com uma corda no pescoço diante dos colegas, dos jurisdicionados. Em muitas outras operações vemos pessoas que são acusadas, vão presas, são execradas e depois nada é apresentado efetivamente contra elas. Como fica a situação dessas pessoas?
Asfor Rocha — No caso pontuado, além de não ter recebido a denúncia por acusações de graves desvios de conduta na atividade judicante, o STJ determinou também a extração de peças para apurar a prática de abusos de direito cometido eventualmente por algum integrante da Polícia. É a primeira vez que o tribunal decidiu assim. Queremos afastar do nosso meio pessoas que cometem desvios de conduta. Mas também estamos conscientes de que devemos garantir as prerrogativas constitucionais. As feridas deixadas nas almas desses magistrados jamais vão cicatrizar. É evidente que isso não pode ficar impune. Diga-se de passagem que a cidadania brasileira deve muito ao ministro Gilmar Mendes, porque foi ele quem deu o primeiro sinal de alerta para abusos que estavam sendo cometidos.
ConJur — O constituinte de 1988 decidiu, conscientemente ou não, que o Supremo ia governar o país também. Ao colocar quase todos os aspectos importantes da vida nacional na Constituição, ele definiu que a última palavra sobre questões de grande relevância ficassem na mão dos onze ministros que, por essa razão, ganharam um nível de exposição de popstars. É incômodo conviver com um vizinho espaçoso assim?
Asfor Rocha — Nesse momento histórico de aprimoramento das instituições democráticas, esse protagonismo do Supremo é bom para a sociedade. Porque, com isso as pessoas começam a ver. As pessoas querem transparência do Judiciário. Mas, penso eu que quando se quer transparência não se estava a querer ver as decisões ao vivo como o Supremo está oferecendo. Nesse momento de afirmação e de exposição do Judiciário, é bom que as pessoas vejam por si mesmas, sem intermediários, a forma como o Supremo está julgando.
ConJur — Essa super exposição acaba exibindo divergências entre os próprios julgadores, e também dos representantes do Judiciário com chefes dos outros poderes. Isso é bom ou ruim?
Asfor Rocha — Você está se referindo a duas coisas. Uma é a exposição das decisões do Supremo. Outra é a exposição da postura dos ministros em assuntos que estão fora dos autos. Com relação à primeira, é bom para a afirmação do Judiciário que isso esteja ocorrendo. Eu não sei se será sempre bom ter essa exposição. Porque em nenhum país do mundo as decisões dos seus tribunais são lançadas ao vivo e a cores nas televisões. Não há cinco países no mundo em que as decisões dos tribunais sejam públicas.
ConJur — Nos demais, só as partes tem conhecimento?
Asfor Rocha — Só as partes e seus advogados. Por exemplo, estava na França, no tribunal que corresponde ao nosso STJ. Em uma alta concessão, permitiram que eu entrasse na sala de julgamento, só para ver como era a sala e como se procedia o julgamento por alguns minutos. Será que só nós estamos certos, fazendo o contrário? Não sei. Tenho minhas dúvidas. Em quase todos os bons encontros da vida, a síntese sai do conflito da tese com a antítese. Qual era a tese que nós tínhamos? O absoluto silêncio do Judiciário. A antítese é a absoluta estridência do Judiciário. Acho que nós vamos chegar a uma síntese. Nem a sociedade vai querer nem nós vamos necessitar de uma exposição tamanha. Com o amadurecimento das nossas instituições e com a afirmação do Judiciário, continuaremos transparentes, mas sem tanta exposição.
ConJur — Tem um efeito positivo que é o didatismo. As pessoas passam a entender melhor o que é a Justiça. Nós que já tivemos cem milhões de técnicos de futebol, agora teremos duzentos milhões de juízes. Não é um avanço?
Asfor Rocha — Neste momento de descoberta do Judiciário, talvez seja bom, mas eu tenho minhas dúvidas se será boa a permanência. A minha convicção — essa é uma afirmação muito difícil de ser compreendida pelos magistrados e, sobretudo, pela sociedade — é que não vai permanecer desse jeito.
ConJur — O Judiciário brasileiro foi construído, assim como o Poder Executivo, pelas oligarquias. Antigamente a maioria dos governantes do país era de bacharéis. Hoje o presidente da República é um torneiro mecânico. Foi uma revolução. No Judiciário essa transformação acontece também?
Asfor Rocha — No STJ, somos 33 ministros. Oitenta por cento no mínimo dos ministros integrantes do STJ são egressos das classes mais necessitadas.
ConJur — E a origem geográfica do juiz influi na voz do colegiado?
Asfor Rocha — É evidente que a origem dos ministros tem uma influência extraordinária nas decisões. Porque as realidades no Norte, Nordeste, Sul ou Sudeste são bem distintas, assim como a formação ideológica, a formação cultural. Então, o Judiciário é tão mais completo, quanto maior for a diversidade das origens regionais de seus componentes. Da mesma forma, como é saudável o tribunal ser composto por magistrados de carreira, advogados, membros do Ministério Público, por causa das visões diferentes que têm.
ConJur — Existe um ranking dos estados que mais recorrem ao STJ?
Asfor Rocha — Aqui no STJ é o Rio Grande do Sul, em números absolutos.
ConJur — Tem explicação?
Asfor Rocha — A primeira é que o Tribunal do Rio Grande do Sul não tem seguido as nossas orientações, mesmo sumuladas e mesmo as decorrentes da chamada Lei de Recursos Repetitivos.
ConJur — É uma Justiça alternativa?
Asfor Rocha — Eu diria que não é bem alternativa — é uma Justiça teimosa. Isso não traz benefícios. Se o tribunal, depois de muitas e reiteradas reflexões, decidiu de uma certa maneira, nós não vamos mudar. Agora, quando um tribunal julga diferentemente, primeiro, ele está retardando a finalização do processo; segundo, ele está fomentando frustrações, porque a pessoa que lá ganhou pensa que vai ganhar no STJ — e no STJ não vai ganhar, porque está previamente inferido qual vai ser o resultado; e terceiro, isso conduz ao desprestígio da Justiça, porque contribui para a morosidade e também para a descrença do Judiciário.
ConJur — Houve mesmo o caso de um desembargador que mudou de turma para não seguir a súmula.
Asfor Rocha — Consta do folclore jurídico que o desembargador mudou de turma para não ter de seguir o entendimento sumulado do STJ.
ConJur —Como está a implantação do processo virtual no STJ?
Asfor Rocha — De um total de 240 mil processos, o STJ já tem mais ou menos 150 mil processos virtualizados. [dado colhido na última semana de outubro de 2009]
ConJur — Processos originários ou só recursos?
Asfor Rocha — Originários e recursais. Muitos processos originários já chegam aqui virtualmente. No dia 3 de setembro de 2008, quando eu assumi a presidência do STJ, o tribunal tinha 400 mil processos. Com um ano de administração, o STJ baixou o seu acervo para 240 mil processos. Por várias razões: foi criada uma estrutura de informática no gabinete dos ministros, que passaram a ter em tempo real o andamento do seu trabalho e o controle dos seus processos. Eles sabem precisamente, a cada minuto, a cada segundo que ele abrir o computador, qual é a sua situação, quantos processos estão no gabinete, quantos estão no cartório, quantos estão no Ministério Público, quantos estão com advogados, quantos estão com pedido de vista de outros colegas. Com mais controle, ele passa a desenvolver melhor o seu trabalho. Em segundo lugar, a Lei de Recursos Repetitivos tem represado muitos processos. Terceiro, houve um empenho maior dos magistrados, tanto que todo final de semana, tem ministro do STJ fazendo mutirão, sem pagamento de hora-extra nem para os servidores. É entusiasmo. Está instalada a cultura de derrubar processos. Além da virtualização, que evidentemente dá mais elementos para se julgar mais celeremente.
ConJur — Quando anunciou essa decisão, o senhor disse que queria eliminar o tempo morto que o processo de papel leva. O senhor tem uma quantificação de velocidade?
Asfor Rocha — Demora de seis a oito meses para o processo de papel remetido de um tribunal para o STJ ser distribuído e chegar ao gabinete do ministro relator. O processo digital remitido de qualquer estado chega ao gabinete do ministro em cinco minutos. Nós ainda estamos demorando de cinco a dez dias, mas quando o sistema estiver completo, vamos demorar cinco minutos. O que ainda demora é para que o processo seja julgado. Embora não haja o dado do tempo médio para a lavratura do acórdão com a nova realidade, vamos chegar ao final do ano com praticamente alcançada a chamada Meta 2, estabelecida pelo CNJ. Agora, veja o que acontece: três tribunais não estão remetendo os processos eletronicamente — São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Isso é ruim para esses tribunais.
ConJur — Por que?
Asfor Rocha — Porque os processos deles vão chegar para os ministros relatores depois de seis a oito meses, enquanto os processos dos outros tribunais vão chegar em cinco dias. O que vai acontecer? As novas teses vão ser firmadas pelo STJ sem considerar as teses que foram defendidas por esses três tribunais.
ConJur — A virtualização elimina uma série de procedimentos burocráticos, e certamente contraria muita gente.
Asfor Rocha — Claro. Vamos admitir que num julgamento o ministro pediu vista do processo. Para sair do relator e ir pelos meios burocráticos para a secretaria, até chegar ao gabinete do ministro, demorava um mês. Quando chegava, o ministro já não tinha mais presente os debates de um mês atrás e demorava ainda mais para trazer o processo de novo para a turma. Hoje não tem mais isso. A rigor nos processos já virtualizados, o ministro não tem nem que pedir vista, ele tem que pedir interrupção de julgamento para melhor reflexão, porque vista ele já tem. Ele vê todo o processo o tempo todo. Então, essas remessas para publicação não há mais. Nem perda de tempo para o advogado tirar o processo, ficar com o processo, devolver o processo. Porque o advogado tem o processo a sua disposição a qualquer minuto do dia, todos os dias do ano.
ConJur — E o cidadão também.
Asfor Rocha — Se cadastrar tem também.
ConJur — Quantos processos entram por dia no STJ?
Asfor Rocha — Há um ano, chegavam por dia 8.200 processos. Hoje, são 960, por causa da Lei de Recursos Repetitivos.
ConJur — Qual é o percentual de agravo de instrumento, recurso especial e outros tipos?
Asfor Rocha — Agravo de instrumento e recurso especial juntos, porque o agravo de instrumento é vinculado ao recurso especial, é aquilo que não sumiu. Isso representa mais ou menos 80 % dos processos.
ConJur — Existe algum estudo sobre o tempo gasto desde o surgimento de uma questão até chegar a sua solução?
Asfor Rocha — Não, estamos fazendo esses estudos. Mas uma coisa posso lhe dizer: tem muitos advogados “reclamando” que quando chegam aqui para entregar memoriais aos ministros, os processos já estão julgados. Nós já temos ministros que colocam o processo em pauta na hora em que o recebem.
ConJur — Recentemente, tivemos dois tipos de crítica à ação do CNJ. Uma, veio do ministro Marco Aurélio que disse que o CNJ estava assumindo mais poderes do que na realidade tem. E outra, de magistrados que reclamaram de estar havendo uma execração local de juízes. Como o senhor vê essa questão?
Asfor Rocha — O CNJ foi criado com a expectativa de que, com a sua instalação, todas as mazelas do Judiciário estariam expurgadas. Eu tinha muito receio disso, porque foi criada uma falsa esperança de que no dia seguinte da sua instalação, todas as pessoas iam ter seus processos julgados. Isso, de certa maneira, foi até bom que acontecesse para que todos colocassem os pés no chão. Em seus primeiros passos, veio como órgão punitivo. Depois de três administrações, sobretudo, depois da segunda, e agora com o ministro Gilmar, já se percebe que a sua missão é estabelecer um planejamento estratégico para o Judiciário. Claro que ele tem que combater desvios, como por exemplo, obras suntuosas, excessos de gastos, e também desvios de conduta dos magistrados na função do juiz, que é um ramo ínfimo dado que a quase totalidade do Judiciário é integrada por pessoas de bem.
ConJur — E quanto ao aspecto da reorganização, do alinhamento de regras uniformizadas?
Asfor Rocha — Esse é o grande papel do CNJ. Porque nós, magistrados, não somos vocacionados para a gestão, não tínhamos sequer a atenção chamada para isso. E hoje todos nós estamos conscientes de que o grande problema do Judiciário é a gestão. Nós diminuímos de 400 mil para 240 mil processos em um ano. Por quê? Foi só a gestão, meramente.
ConJur — Aquele grau de autonomia que tinham os tribunais...
Asfor Rocha — Os tribunais estaduais eram ilhas isoladas. A Justiça Federal nunca foi, porque sempre teve o Conselho da Justiça Federal. Mas os estaduais não tinham ninguém a olhar por eles. Hoje, eles sabem que estão sendo observados por um órgão superior. E isso tem tido um efeito extraordinário. Esse é o grande papel do CNJ.
ConJur — Existe espaço para parcerias com outros segmentos?
Asfor Rocha — Muito, porque todo mundo quer um Judiciário ágil. Na virtualização do STJ, deve ser ressaltado que o sistema foi feito por nós, idealizado e executado por nós. E nós cedemos isso de graça para qualquer tribunal, e não é nem do Brasil, é do mundo. Dos 32 tribunais que remetem recursos para o STJ — 27 estaduais e cinco regionais — 29 já estão mandando por via digital, só três que não estão. O que eu quero deles apenas é que comprem scanner, disponibilizem pessoas. O sistema paga R$ 20 milhões por ano aos Correios para os processos chegarem ao STJ. Vou pegar como exemplo o tribunal de São Paulo que tem uma média de 25 % dos processos que chegam no STJ. Vamos admitir que o tribunal gaste R$ 5 milhões com os Correios. Pelos nossos estudos, o TJ gastaria apenas R$ 960 mil para digitalizar tudo. Uma economia fantástica de tempo e dinheiro.
ConJur — Como o senhor vê as soluções que vêm sendo oferecidas pelo Prêmio Innovare.
Asfor Rocha — Sou um grande fã do Innovare. Para se ter uma idéia, o prêmio, no primeiro ano, teve cinco projetos apresentados, hoje tem 700. Isso mostra que o Judiciário inteiro está em busca de soluções.
ConJur — Tem sido possível descobrir ideias boas e exportar para todos os outros?
Asfor Rocha — Sim. Claro. Tem que estabelecer uma boa competição, que é o que foi estabelecido no STJ; todo mundo quer produzir mais do que o outro, cada um quer produzir mais e melhor.
ConJur — Com a evolução do sistema judiciário, surgiram dúvidas que já foram solucionadas em outros países, mas que aqui ainda estamos estudando. Uma delas foi solucionada no exterior com o que chamam de juiz de instrução. Quer dizer, o juiz que se envolve na investigação não julga. Como o senhor vê que poderá ser resolvida essa questão aqui?
Asfor Rocha — A tendência aqui é que o juiz que faça a instrução não seja o juiz que depois prossegue na ação penal. Porque ele já assume, já está de certa forma com o espírito, não direi contagiado, mas receptivo a levar à condenação. Não estou dizendo que seja necessariamente esta convicção que ele vai ter, mas ele já tem certas ideias pré-concebidas, está comprometido em fazer com que a ação tenha a mesma conclusão que teve quando ele foi instado a iniciá-la. Isto está sendo objeto de estudo agora no Congresso Nacional. Eu vejo isso com muita simpatia.
ConJur — Outra questão que vem sendo colocada é a possibilidade de um juiz singular numa só decisão afetar o país todo. Quer dizer, parece ser de bom senso que uma decisão de grande vulto, que interessa a toda a sociedade, seja tomada por colegiado e não só por uma pessoa, mesmo em primeiro grau.
Asfor Rocha — Também vejo com simpatia a ideia de que, em questões de mais larga repercussão, as decisões possam ser tomadas por órgãos colegiados, ainda que de primeira instância. Porque, como eu disse, na profissão de juiz não existe a neutralidade absoluta, nem na de jornalista. Vocês escrevem com a sua formação ideológica, com a sua experiência de vida, com as suas idiossincrasias, assim como nós também julgamos com a presença desses mesmos elementos. É sempre saudável que essas questões de mais larga repercussão, não só de repercussão nacional, mas até mesmo no plano individual, possam ser eventualmente tomadas colegiadamente, ainda no primeiro grau.
ConJur — Existe uma discussão sobre os papéis: o papel da polícia, o papel do Ministério Público e o papel do juiz. A Internet possibilita ao juiz ter acesso a dados que podem circunstanciá-lo melhor a respeito da matéria que ele está julgando. Só que surge uma questão técnica: o juiz pode investigar?
Asfor Rocha — O juiz faz as provas quando provocado, e também de ofício, quando pode determinar a realização de perícia. Mas apenas na função instrutória. Mas prevalece aquela ideia que já discutimos, de que se deve apartar o papel do juiz que atua na instrução e do juiz que recebe a ação.
ConJur — São Paulo tem o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), formado por juízes que só cuidam dos inquéritos. E parece que tem sido bem sucedido.
Asfor Rocha — Exatamente. Não se veem queixas consistentes com relação a isso.
ConJur — Sobre a presunção da inocência versus fichas sujas. Como é que o senhor vê essa tentativa de inversão da presunção da inocência?
Asfor Rocha — No campo penal, eu não tenho dúvida nenhuma de que a presunção de inocência deve ser exaltada em todas as suas circunstâncias. Mas no campo da política, pode haver um temperamento. Vamos admitir que uma pessoa já sofreu condenação de primeiro grau, de segundo grau, está em sede de recurso extraordinário, que em tese não tem efeito suspensivo. Ou mais ainda, já julgado o recurso excepcional desfavoravelmente, está em uma fase embargo de declaração e, portanto, não chegou a transitar em julgado. Ou que seja réu confesso, ainda que procrastinando porque quer uma pena menor ou coisa assim. Eu pergunto: não poderiam ser mitigados os efeitos da presunção de inocência? Acho que sim, sobretudo se o crime pelo qual ele foi condenado, ainda sem trânsito em julgado, tenha a ver com a administração pública.
ConJur — O político não é o único agente público. O juiz é agente público, o integrante do Ministério Público é agente público, e até mesmo os jornalistas têm uma função pública. No caso da tevê, trata-se de uma concessão pública. Esse raciocínio, de que a condenação inabilita para a função pública não poderia ser estendido a jornalistas, juízes e integrantes do Ministério Público?
Asfor Rocha — Com relação ao magistrado, a própria Loman já estende, por exemplo, quando diz que no ato de recebimento de uma denúncia, o órgão, que é um tribunal, decide se o afasta da função. Em setores privados, ainda que exercidos por força de concessão pública, tenho minhas dúvidas que isso possa acontecer.
O amadurecimento do país e o interminável aprendizado logo vai mostrar a importância do Superior Tribunal de Justiça, a casa onde se decide as regras do cotidiano dos brasileiros. Assim como as construções faraônicas chamam mais atenção que obras de saneamento básico, por serem subterrâneas, o STJ constrói o certo e o errado nas relações entre o marido e a mulher, a empresa e o consumidor, o fisco e o contribuinte, o inquilino e o senhorio, o banco e o correntista, o segurado e a seguradora. Nada que concorra, no noticiário, com as denúncias dos mensalões petista e tucano. Mas, certamente, muito mais importante para o brasileiro.
A entrevista aqui transcrita mostra o pensamento de um juiz: o presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha. Nordestino habilidoso, conhecido pelo carinho que dedica à sua família e pela capacidade de solucionar problemas complexos, é pacífico e cordato. Mas o homem vira uma fera quando se duvida da boa fé do juiz brasileiro. Irritação maior ele só mostra quando topa com dois tipos de juízes, definidos por ele: o desonesto e o covarde.
Na conversa franca que se segue, o cearense Cesar Asfor Rocha enfrentou as questões mais delicadas e nervosas como quem toma um café na esquina. Por que a Justiça sempre foi acusada de ser patronal e governista? Ele responde: ora, porque sempre foi mesmo. Mas com uma ressalva. Não apenas a Justiça, mas também a sociedade mostrava e impunha essa vocação. Isso não é mais assim, garante ele. Se o juiz é vulnerável à pressão da opinião pública? “Mais até do que se imagina”, afirma. E isso não é necessariamente ruim, acrescenta.
Com frontalidade, enfrenta outra polêmica: que chances têm as pessoas demonizadas pela imprensa, como Daniel Dantas, o casal Nardoni ou o juiz Nicolau. “A consciência do magistrado”, reponde ele, que admite o conluio entre a sede desmesurada de Justiça da população, a imprensa e o dueto composto pela polícia e Ministério Público — principais fornecedores de notícias de impacto, mas nem sempre verdadeiras. “O magistrado covarde é tão nefasto quanto um magistrado desonesto”, reage o ministro. Com a mesma coragem, Asfor Rocha atribui a Gilmar Mendes, seu colega no STF, o mérito de ter estancado a escalada irracional que colocava delegados inflamados, procuradores e juízes de primeiro grau no governo do país.
Sem se poupar de azedumes periféricos, Asfor Rocha entrega nesta entrevista os tribunais que resistem aos tempos modernos e às sumulas do STJ: Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, coadjuvados pelo Rio de Janeiro. Uma prática nada desprezível para a cultura nacional. Os tribunais gastam cerca de R$ 20 milhões por ano só para mandar, pelo correio, os recursos para o STJ. São Paulo gasta perto de R$ 5 milhões. A digitalização dos processos paulistas (que o próprio STJ se dispõe a bancar) custaria menos de R$ 960 mil. Restam poucas dúvidas nessa discussão.
Leia a entrevista
ConJur — O economista americano Albert Fishlow defende a tese de que a estabilidade política e econômica do Brasil, não foi conduzida pelos políticos, mas pelo Judiciário e pelo Ministério Público. O advogado Oscar Vilhena entende que o desenvolvimento econômico, político e ambiental brasileiro está nas mãos dos operadores do Direito, que são as pessoas que constroem as regras que possibilitam essa evolução. Como é que o senhor vê essas interpretações?
Asfor Rocha — Não é só o Judiciário brasileiro que está em alta, é o Judiciário no mundo. Já tivemos o século do Executivo e o século do Legislativo. Este é o século do Judiciário. No caso brasileiro, o Judiciário está sendo mais notado, porque ele era muito calado. Mesmo aqueles que falavam eram muito tímidos. Além de estarmos neste instante de vivência do século do Judiciário, a Justiça está se mostrando e despertando o interesse da imprensa. Desde que o chamado consenso de Washington cuidou de aprimorar a Justiça na crença de dar mais previsibilidade em termos de definições de teses jurídicas, notamos a presença do Judiciário definindo grandes questões. Não se pode cogitar de desenvolvimento que decorra da movimentação de capitais estrangeiros sem que se dê tranqüilidade jurídica à sociedade.
ConJur — No Brasil, para cada dois habitantes corresponde um processo em tramitação na Justiça. Em outros países, a proporção é dessa ordem?
Asfor Rocha — Não, não é assim. Nós tínhamos uma demanda reprimida que explodiu com a redemocratização e com a Constituição de 1988, por dois aspectos. Primeiro, porque a Constituição de 88 reconheceu muitos direitos que antes eram sonegados ao cidadão e à coletividade. Segundo, porque ela tirou o medo que as pessoas tinham de litigar. O patrão antes inibia o empregado de entrar com a reclamação trabalhista. Hoje, o empregado não tem mais medo. O contribuinte não tem mais medo do fisco, o devedor não tem mais medo do credor.
ConJur — Não é porque o brasileiro é um litigioso nato?
Asfor Rocha — Não, não é por isso. É próprio do momento histórico que estamos vivendo. Temos essas duas razões: aumento de direitos da cidadania e a própria consciência desses direitos de cidadania. Essa explosão nos assusta por um lado, porque sobrecarrega a nós magistrados, mas por outro nos conforta, porque é o estuário próprio para compor conflitos em uma sociedade democrática.
ConJur — O senhor falou do século do Judiciário. O Brasil e o Judiciário estão preparados para entrar nesse século? Nossas escolas, por exemplo, preparam bons juízes?
Asfor Rocha — Temos faculdades deficientes, mas temos excelentes faculdades de Direito também. O que ocorre é que ninguém percebe que o Judiciário brasileiro é um dos mais bem estruturados do mundo pelas garantias que os magistrados têm. O juiz brasileiro tem prerrogativas que nenhum juiz do mundo tem. O que ele não tem ainda é preparo para a convivência. E por isso, muitas vezes, ele não é compreendido. Por exemplo, é correto que um jovem recém saído da faculdade, mesmo com algum tempo de experiência forense, possa julgar? Ele estaria já amadurecido para decidir sobre a vida, liberdade, honra, e sobre o patrimônio das pessoas? Então tem certos aspectos que estão sendo hoje objeto de críticas. Não só pela sociedade, mas pela própria magistratura.
ConJur — O homem público está sendo demonizado no Brasil. O professor [J. J. Gomes] Canotilho tem conclamado a que se faça uma revisão dessa maneira de ver o homem público e os políticos em particular. O senhor, como juiz, sente uma certa aversão da opinião pública pelo homem público brasileiro?
Asfor Rocha — Durante um longo período da nossa história o homem público se sentia imune a qualquer crítica. Isso evidentemente conduz a abusos. Esses desvios passaram a ser mais notados. Além disso, houve um aprimoramento muito grande da atividade pública no Brasil. A sociedade brasileira tem se aprimorado, porque ela estava muito distanciada do viés democrático que deveríamos ter há mais tempo. O que era a magistratura há dez anos? O Judiciário era um desconhecido, só aparecia nas páginas do Diário Oficial. Hoje, as questões mais relevantes da Justiça estão sendo levadas ao conhecimento do grande público, debatidas, criticadas e analisadas nas páginas dos jornais.
ConJur — Que efeitos pode ter a relutância do Senado em cumprir uma ordem do STF ?
Asfor Rocha — O episódio mostrou o amadurecimento das instituições. Foi resolvido logo. Mas é evidente que a projeção do episódio prejudicaria a imagem do país e, internamente, seria um péssimo exemplo em dois níveis. Porque se o Senado pode desobedecer ordem judicial, isso vai servir de argumento para quem quiser. E se é possível desobedecer o STF, o que dirá os demais tribunais. Mas logo se percebeu o enorme equívoco do Senado e isso foi resolvido.
ConJur — Mas não há também culpa de uma legislação confusa? Afinal além das fronteiras difusas entre os poderes há também o fato de que a Constituição prevê um rito no Parlamento para a cassação de mandatos.
Asfor Rocha — A legislação em geral e a lei em particular é o resultado do possível. Ela nasce de uma ambiência de conflitos de opinião. Os textos legais são produzidos por conjuntos de pessoas que pensam diferente. Para que haja consenso não se pode explicitar genericamente o que será aplicado a casos particulares. A interpretação — e é para isso que existe o Judiciário — cabe aos juízes.
ConJur — Existe uma ideia estabelecida de se atribuir à lei e à Justiça muitos problemas que na verdade são do Brasil. É o caso, por exemplo, da má distribuição de renda. Quem tem mais dinheiro compra o melhor carro, vai para o melhor hospital, tem as melhores férias, e também contrata o melhor advogado. No entanto, o que se diz é que a Justiça protege o rico. O senhor sente esse tipo de culpa?
Asfor Rocha — É uma visão equivocada, porque o juiz tem que ficar adstrito aos elementos dos autos, ao que está posto na lei. Evidentemente a visão do que está posto na lei depende da ideologia de cada um, das experiências, das frustrações, da felicidade, da tristeza, da alegria que cada juiz tem no momento em que julga. Por isso, um mesmo dispositivo legal tem interpretações díspares dentro de um mesmo colegiado. O juiz busca fundamento da sua decisão na lei. Mas a sua inspiração para julgar não está contida só na lei. Está contida também na sua visão do mundo.
ConJur — Existe uma velha crítica da esquerda, de que a Justiça no Brasil, historicamente, é patronal e governista. Por que?
Asfor Rocha — Porque ela realmente foi. Não só o Judiciário, mas a sociedade como um todo era patronal e governista, era submissa a esses setores. Hoje já não é desse jeito. O Judiciário está mais independente ou menos dependente do governo do que há dez anos. A nomeação dos desembargadores, com a promoção de juízes para os tribunais, hoje se dá por escolha do próprio judiciário. A dependência orçamentária dos tribunais ao executivo ainda existe, mas não na extensão que tinha antes.
ConJur — O Judiciário é contra-majoritário, mas o juiz não. O juiz é um cidadão, que tem parentes, tem amigos, tem vizinhos; ele não vive no tribunal, mas numa cidade, numa rua, numa casa, etc. Como é que o senhor vê o peso da opinião pública nas decisões da Justiça?
Asfor Rocha — É muito forte, mais até do que se imagina. E não é ruim que seja assim. Mas é bom que seja assim por várias razões. Pelo volume de processos que nós temos, muitas vezes não percebemos a importância daquilo que está sendo julgado, a repercussão que tem no plano institucional, político, econômico ou social. E é necessário que a gente perceba. Segundo, porque somos despertados para refletir sobre nossos julgamentos considerando a opinião de quem está de fora. Mas a opinião pública jamais pode ser determinante para a decisão do magistrado.A opinião pública não pode conduzir a decisão do juiz, o juiz não pode decidir com receio de ir de encontro à opinião público.
ConJur — Se a televisão convencer o público que uma pessoa de nome Nicolau, Nardoni ou Daniel Dantas é realmente uma grande inimiga da sociedade, quem vai impedir que essa pessoa seja presa preventivamente?
Asfor Rocha — A consciência do magistrado. O magistrado covarde é tão nefasto quanto um magistrado desonesto. Aliás, eu não sei o que é pior: se é um magistrado desonesto ou se é um magistrado covarde. Para não perder tempo, prefiro dizer que os dois estão no mesmo patamar. O juiz não pode se acovardar para julgar contra as suas convicções apenas pelo receio de desagradar a maioria.
ConJur — A sociedade demanda emoções fortes e em alguns momentos vigora um clima de mata-e-esfola, de linchamento. Quem tem as notícias mais saborosas para atender a essa demanda são a polícia e o Ministério Público, porque cabe a eles as acusações que dão notícia. Diante dessa avalanche, o senhor não sente que a Justiça é pautada pela Polícia e pelo Ministério Público?
Asfor Rocha — Já foi mais. Porque era só o juiz que se achava no dever de ser pautado pelo estrito cumprimento da lei, sobretudo no que diz respeito às garantias constitucionais. A Polícia não atinava que deveria ter esse tipo de preocupação. Ela achava que seu papel era acusar. Em outros tempos, o Ministério Público também tinha disso. Porque é muito fácil acusar. O juiz que vai julgar que cuide de apurar os excesso. Mas a Polícia e o Ministério Público começam a perceber que também têm compromisso com a legalidade. O Ministério Público é cobrado internamente pelos seus próprios integrantes. Por exemplo, quando a denúncia que o delegado ou o membro do Ministério Público leva para o Judiciário, muitas vezes de uma forma escandalosa, não encontra ressonância no julgamento, ele começa a ser mal visto dentro de sua classe. Notamos que esses órgãos têm compromisso de evitar abusos, até mesmo pelo interesse em seu próprio crescimento institucional.
ConJur — Recentemente, o STJ rejeitou denúncia contra três integrantes do TRF de São Paulo por não enxergar qualquer indício que respaldasse as acusações feitas contra eles. Por mais de dois anos, esses juízes se viram com uma corda no pescoço diante dos colegas, dos jurisdicionados. Em muitas outras operações vemos pessoas que são acusadas, vão presas, são execradas e depois nada é apresentado efetivamente contra elas. Como fica a situação dessas pessoas?
Asfor Rocha — No caso pontuado, além de não ter recebido a denúncia por acusações de graves desvios de conduta na atividade judicante, o STJ determinou também a extração de peças para apurar a prática de abusos de direito cometido eventualmente por algum integrante da Polícia. É a primeira vez que o tribunal decidiu assim. Queremos afastar do nosso meio pessoas que cometem desvios de conduta. Mas também estamos conscientes de que devemos garantir as prerrogativas constitucionais. As feridas deixadas nas almas desses magistrados jamais vão cicatrizar. É evidente que isso não pode ficar impune. Diga-se de passagem que a cidadania brasileira deve muito ao ministro Gilmar Mendes, porque foi ele quem deu o primeiro sinal de alerta para abusos que estavam sendo cometidos.
ConJur — O constituinte de 1988 decidiu, conscientemente ou não, que o Supremo ia governar o país também. Ao colocar quase todos os aspectos importantes da vida nacional na Constituição, ele definiu que a última palavra sobre questões de grande relevância ficassem na mão dos onze ministros que, por essa razão, ganharam um nível de exposição de popstars. É incômodo conviver com um vizinho espaçoso assim?
Asfor Rocha — Nesse momento histórico de aprimoramento das instituições democráticas, esse protagonismo do Supremo é bom para a sociedade. Porque, com isso as pessoas começam a ver. As pessoas querem transparência do Judiciário. Mas, penso eu que quando se quer transparência não se estava a querer ver as decisões ao vivo como o Supremo está oferecendo. Nesse momento de afirmação e de exposição do Judiciário, é bom que as pessoas vejam por si mesmas, sem intermediários, a forma como o Supremo está julgando.
ConJur — Essa super exposição acaba exibindo divergências entre os próprios julgadores, e também dos representantes do Judiciário com chefes dos outros poderes. Isso é bom ou ruim?
Asfor Rocha — Você está se referindo a duas coisas. Uma é a exposição das decisões do Supremo. Outra é a exposição da postura dos ministros em assuntos que estão fora dos autos. Com relação à primeira, é bom para a afirmação do Judiciário que isso esteja ocorrendo. Eu não sei se será sempre bom ter essa exposição. Porque em nenhum país do mundo as decisões dos seus tribunais são lançadas ao vivo e a cores nas televisões. Não há cinco países no mundo em que as decisões dos tribunais sejam públicas.
ConJur — Nos demais, só as partes tem conhecimento?
Asfor Rocha — Só as partes e seus advogados. Por exemplo, estava na França, no tribunal que corresponde ao nosso STJ. Em uma alta concessão, permitiram que eu entrasse na sala de julgamento, só para ver como era a sala e como se procedia o julgamento por alguns minutos. Será que só nós estamos certos, fazendo o contrário? Não sei. Tenho minhas dúvidas. Em quase todos os bons encontros da vida, a síntese sai do conflito da tese com a antítese. Qual era a tese que nós tínhamos? O absoluto silêncio do Judiciário. A antítese é a absoluta estridência do Judiciário. Acho que nós vamos chegar a uma síntese. Nem a sociedade vai querer nem nós vamos necessitar de uma exposição tamanha. Com o amadurecimento das nossas instituições e com a afirmação do Judiciário, continuaremos transparentes, mas sem tanta exposição.
ConJur — Tem um efeito positivo que é o didatismo. As pessoas passam a entender melhor o que é a Justiça. Nós que já tivemos cem milhões de técnicos de futebol, agora teremos duzentos milhões de juízes. Não é um avanço?
Asfor Rocha — Neste momento de descoberta do Judiciário, talvez seja bom, mas eu tenho minhas dúvidas se será boa a permanência. A minha convicção — essa é uma afirmação muito difícil de ser compreendida pelos magistrados e, sobretudo, pela sociedade — é que não vai permanecer desse jeito.
ConJur — O Judiciário brasileiro foi construído, assim como o Poder Executivo, pelas oligarquias. Antigamente a maioria dos governantes do país era de bacharéis. Hoje o presidente da República é um torneiro mecânico. Foi uma revolução. No Judiciário essa transformação acontece também?
Asfor Rocha — No STJ, somos 33 ministros. Oitenta por cento no mínimo dos ministros integrantes do STJ são egressos das classes mais necessitadas.
ConJur — E a origem geográfica do juiz influi na voz do colegiado?
Asfor Rocha — É evidente que a origem dos ministros tem uma influência extraordinária nas decisões. Porque as realidades no Norte, Nordeste, Sul ou Sudeste são bem distintas, assim como a formação ideológica, a formação cultural. Então, o Judiciário é tão mais completo, quanto maior for a diversidade das origens regionais de seus componentes. Da mesma forma, como é saudável o tribunal ser composto por magistrados de carreira, advogados, membros do Ministério Público, por causa das visões diferentes que têm.
ConJur — Existe um ranking dos estados que mais recorrem ao STJ?
Asfor Rocha — Aqui no STJ é o Rio Grande do Sul, em números absolutos.
ConJur — Tem explicação?
Asfor Rocha — A primeira é que o Tribunal do Rio Grande do Sul não tem seguido as nossas orientações, mesmo sumuladas e mesmo as decorrentes da chamada Lei de Recursos Repetitivos.
ConJur — É uma Justiça alternativa?
Asfor Rocha — Eu diria que não é bem alternativa — é uma Justiça teimosa. Isso não traz benefícios. Se o tribunal, depois de muitas e reiteradas reflexões, decidiu de uma certa maneira, nós não vamos mudar. Agora, quando um tribunal julga diferentemente, primeiro, ele está retardando a finalização do processo; segundo, ele está fomentando frustrações, porque a pessoa que lá ganhou pensa que vai ganhar no STJ — e no STJ não vai ganhar, porque está previamente inferido qual vai ser o resultado; e terceiro, isso conduz ao desprestígio da Justiça, porque contribui para a morosidade e também para a descrença do Judiciário.
ConJur — Houve mesmo o caso de um desembargador que mudou de turma para não seguir a súmula.
Asfor Rocha — Consta do folclore jurídico que o desembargador mudou de turma para não ter de seguir o entendimento sumulado do STJ.
ConJur —Como está a implantação do processo virtual no STJ?
Asfor Rocha — De um total de 240 mil processos, o STJ já tem mais ou menos 150 mil processos virtualizados. [dado colhido na última semana de outubro de 2009]
ConJur — Processos originários ou só recursos?
Asfor Rocha — Originários e recursais. Muitos processos originários já chegam aqui virtualmente. No dia 3 de setembro de 2008, quando eu assumi a presidência do STJ, o tribunal tinha 400 mil processos. Com um ano de administração, o STJ baixou o seu acervo para 240 mil processos. Por várias razões: foi criada uma estrutura de informática no gabinete dos ministros, que passaram a ter em tempo real o andamento do seu trabalho e o controle dos seus processos. Eles sabem precisamente, a cada minuto, a cada segundo que ele abrir o computador, qual é a sua situação, quantos processos estão no gabinete, quantos estão no cartório, quantos estão no Ministério Público, quantos estão com advogados, quantos estão com pedido de vista de outros colegas. Com mais controle, ele passa a desenvolver melhor o seu trabalho. Em segundo lugar, a Lei de Recursos Repetitivos tem represado muitos processos. Terceiro, houve um empenho maior dos magistrados, tanto que todo final de semana, tem ministro do STJ fazendo mutirão, sem pagamento de hora-extra nem para os servidores. É entusiasmo. Está instalada a cultura de derrubar processos. Além da virtualização, que evidentemente dá mais elementos para se julgar mais celeremente.
ConJur — Quando anunciou essa decisão, o senhor disse que queria eliminar o tempo morto que o processo de papel leva. O senhor tem uma quantificação de velocidade?
Asfor Rocha — Demora de seis a oito meses para o processo de papel remetido de um tribunal para o STJ ser distribuído e chegar ao gabinete do ministro relator. O processo digital remitido de qualquer estado chega ao gabinete do ministro em cinco minutos. Nós ainda estamos demorando de cinco a dez dias, mas quando o sistema estiver completo, vamos demorar cinco minutos. O que ainda demora é para que o processo seja julgado. Embora não haja o dado do tempo médio para a lavratura do acórdão com a nova realidade, vamos chegar ao final do ano com praticamente alcançada a chamada Meta 2, estabelecida pelo CNJ. Agora, veja o que acontece: três tribunais não estão remetendo os processos eletronicamente — São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Isso é ruim para esses tribunais.
ConJur — Por que?
Asfor Rocha — Porque os processos deles vão chegar para os ministros relatores depois de seis a oito meses, enquanto os processos dos outros tribunais vão chegar em cinco dias. O que vai acontecer? As novas teses vão ser firmadas pelo STJ sem considerar as teses que foram defendidas por esses três tribunais.
ConJur — A virtualização elimina uma série de procedimentos burocráticos, e certamente contraria muita gente.
Asfor Rocha — Claro. Vamos admitir que num julgamento o ministro pediu vista do processo. Para sair do relator e ir pelos meios burocráticos para a secretaria, até chegar ao gabinete do ministro, demorava um mês. Quando chegava, o ministro já não tinha mais presente os debates de um mês atrás e demorava ainda mais para trazer o processo de novo para a turma. Hoje não tem mais isso. A rigor nos processos já virtualizados, o ministro não tem nem que pedir vista, ele tem que pedir interrupção de julgamento para melhor reflexão, porque vista ele já tem. Ele vê todo o processo o tempo todo. Então, essas remessas para publicação não há mais. Nem perda de tempo para o advogado tirar o processo, ficar com o processo, devolver o processo. Porque o advogado tem o processo a sua disposição a qualquer minuto do dia, todos os dias do ano.
ConJur — E o cidadão também.
Asfor Rocha — Se cadastrar tem também.
ConJur — Quantos processos entram por dia no STJ?
Asfor Rocha — Há um ano, chegavam por dia 8.200 processos. Hoje, são 960, por causa da Lei de Recursos Repetitivos.
ConJur — Qual é o percentual de agravo de instrumento, recurso especial e outros tipos?
Asfor Rocha — Agravo de instrumento e recurso especial juntos, porque o agravo de instrumento é vinculado ao recurso especial, é aquilo que não sumiu. Isso representa mais ou menos 80 % dos processos.
ConJur — Existe algum estudo sobre o tempo gasto desde o surgimento de uma questão até chegar a sua solução?
Asfor Rocha — Não, estamos fazendo esses estudos. Mas uma coisa posso lhe dizer: tem muitos advogados “reclamando” que quando chegam aqui para entregar memoriais aos ministros, os processos já estão julgados. Nós já temos ministros que colocam o processo em pauta na hora em que o recebem.
ConJur — Recentemente, tivemos dois tipos de crítica à ação do CNJ. Uma, veio do ministro Marco Aurélio que disse que o CNJ estava assumindo mais poderes do que na realidade tem. E outra, de magistrados que reclamaram de estar havendo uma execração local de juízes. Como o senhor vê essa questão?
Asfor Rocha — O CNJ foi criado com a expectativa de que, com a sua instalação, todas as mazelas do Judiciário estariam expurgadas. Eu tinha muito receio disso, porque foi criada uma falsa esperança de que no dia seguinte da sua instalação, todas as pessoas iam ter seus processos julgados. Isso, de certa maneira, foi até bom que acontecesse para que todos colocassem os pés no chão. Em seus primeiros passos, veio como órgão punitivo. Depois de três administrações, sobretudo, depois da segunda, e agora com o ministro Gilmar, já se percebe que a sua missão é estabelecer um planejamento estratégico para o Judiciário. Claro que ele tem que combater desvios, como por exemplo, obras suntuosas, excessos de gastos, e também desvios de conduta dos magistrados na função do juiz, que é um ramo ínfimo dado que a quase totalidade do Judiciário é integrada por pessoas de bem.
ConJur — E quanto ao aspecto da reorganização, do alinhamento de regras uniformizadas?
Asfor Rocha — Esse é o grande papel do CNJ. Porque nós, magistrados, não somos vocacionados para a gestão, não tínhamos sequer a atenção chamada para isso. E hoje todos nós estamos conscientes de que o grande problema do Judiciário é a gestão. Nós diminuímos de 400 mil para 240 mil processos em um ano. Por quê? Foi só a gestão, meramente.
ConJur — Aquele grau de autonomia que tinham os tribunais...
Asfor Rocha — Os tribunais estaduais eram ilhas isoladas. A Justiça Federal nunca foi, porque sempre teve o Conselho da Justiça Federal. Mas os estaduais não tinham ninguém a olhar por eles. Hoje, eles sabem que estão sendo observados por um órgão superior. E isso tem tido um efeito extraordinário. Esse é o grande papel do CNJ.
ConJur — Existe espaço para parcerias com outros segmentos?
Asfor Rocha — Muito, porque todo mundo quer um Judiciário ágil. Na virtualização do STJ, deve ser ressaltado que o sistema foi feito por nós, idealizado e executado por nós. E nós cedemos isso de graça para qualquer tribunal, e não é nem do Brasil, é do mundo. Dos 32 tribunais que remetem recursos para o STJ — 27 estaduais e cinco regionais — 29 já estão mandando por via digital, só três que não estão. O que eu quero deles apenas é que comprem scanner, disponibilizem pessoas. O sistema paga R$ 20 milhões por ano aos Correios para os processos chegarem ao STJ. Vou pegar como exemplo o tribunal de São Paulo que tem uma média de 25 % dos processos que chegam no STJ. Vamos admitir que o tribunal gaste R$ 5 milhões com os Correios. Pelos nossos estudos, o TJ gastaria apenas R$ 960 mil para digitalizar tudo. Uma economia fantástica de tempo e dinheiro.
ConJur — Como o senhor vê as soluções que vêm sendo oferecidas pelo Prêmio Innovare.
Asfor Rocha — Sou um grande fã do Innovare. Para se ter uma idéia, o prêmio, no primeiro ano, teve cinco projetos apresentados, hoje tem 700. Isso mostra que o Judiciário inteiro está em busca de soluções.
ConJur — Tem sido possível descobrir ideias boas e exportar para todos os outros?
Asfor Rocha — Sim. Claro. Tem que estabelecer uma boa competição, que é o que foi estabelecido no STJ; todo mundo quer produzir mais do que o outro, cada um quer produzir mais e melhor.
ConJur — Com a evolução do sistema judiciário, surgiram dúvidas que já foram solucionadas em outros países, mas que aqui ainda estamos estudando. Uma delas foi solucionada no exterior com o que chamam de juiz de instrução. Quer dizer, o juiz que se envolve na investigação não julga. Como o senhor vê que poderá ser resolvida essa questão aqui?
Asfor Rocha — A tendência aqui é que o juiz que faça a instrução não seja o juiz que depois prossegue na ação penal. Porque ele já assume, já está de certa forma com o espírito, não direi contagiado, mas receptivo a levar à condenação. Não estou dizendo que seja necessariamente esta convicção que ele vai ter, mas ele já tem certas ideias pré-concebidas, está comprometido em fazer com que a ação tenha a mesma conclusão que teve quando ele foi instado a iniciá-la. Isto está sendo objeto de estudo agora no Congresso Nacional. Eu vejo isso com muita simpatia.
ConJur — Outra questão que vem sendo colocada é a possibilidade de um juiz singular numa só decisão afetar o país todo. Quer dizer, parece ser de bom senso que uma decisão de grande vulto, que interessa a toda a sociedade, seja tomada por colegiado e não só por uma pessoa, mesmo em primeiro grau.
Asfor Rocha — Também vejo com simpatia a ideia de que, em questões de mais larga repercussão, as decisões possam ser tomadas por órgãos colegiados, ainda que de primeira instância. Porque, como eu disse, na profissão de juiz não existe a neutralidade absoluta, nem na de jornalista. Vocês escrevem com a sua formação ideológica, com a sua experiência de vida, com as suas idiossincrasias, assim como nós também julgamos com a presença desses mesmos elementos. É sempre saudável que essas questões de mais larga repercussão, não só de repercussão nacional, mas até mesmo no plano individual, possam ser eventualmente tomadas colegiadamente, ainda no primeiro grau.
ConJur — Existe uma discussão sobre os papéis: o papel da polícia, o papel do Ministério Público e o papel do juiz. A Internet possibilita ao juiz ter acesso a dados que podem circunstanciá-lo melhor a respeito da matéria que ele está julgando. Só que surge uma questão técnica: o juiz pode investigar?
Asfor Rocha — O juiz faz as provas quando provocado, e também de ofício, quando pode determinar a realização de perícia. Mas apenas na função instrutória. Mas prevalece aquela ideia que já discutimos, de que se deve apartar o papel do juiz que atua na instrução e do juiz que recebe a ação.
ConJur — São Paulo tem o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), formado por juízes que só cuidam dos inquéritos. E parece que tem sido bem sucedido.
Asfor Rocha — Exatamente. Não se veem queixas consistentes com relação a isso.
ConJur — Sobre a presunção da inocência versus fichas sujas. Como é que o senhor vê essa tentativa de inversão da presunção da inocência?
Asfor Rocha — No campo penal, eu não tenho dúvida nenhuma de que a presunção de inocência deve ser exaltada em todas as suas circunstâncias. Mas no campo da política, pode haver um temperamento. Vamos admitir que uma pessoa já sofreu condenação de primeiro grau, de segundo grau, está em sede de recurso extraordinário, que em tese não tem efeito suspensivo. Ou mais ainda, já julgado o recurso excepcional desfavoravelmente, está em uma fase embargo de declaração e, portanto, não chegou a transitar em julgado. Ou que seja réu confesso, ainda que procrastinando porque quer uma pena menor ou coisa assim. Eu pergunto: não poderiam ser mitigados os efeitos da presunção de inocência? Acho que sim, sobretudo se o crime pelo qual ele foi condenado, ainda sem trânsito em julgado, tenha a ver com a administração pública.
ConJur — O político não é o único agente público. O juiz é agente público, o integrante do Ministério Público é agente público, e até mesmo os jornalistas têm uma função pública. No caso da tevê, trata-se de uma concessão pública. Esse raciocínio, de que a condenação inabilita para a função pública não poderia ser estendido a jornalistas, juízes e integrantes do Ministério Público?
Asfor Rocha — Com relação ao magistrado, a própria Loman já estende, por exemplo, quando diz que no ato de recebimento de uma denúncia, o órgão, que é um tribunal, decide se o afasta da função. Em setores privados, ainda que exercidos por força de concessão pública, tenho minhas dúvidas que isso possa acontecer.
Comentários