Por Flávio Yarshell, do Conjur
Começou nesta segunda-feira (7/12) aquilo que o Conselho Nacional de Justiça qualificou como "mobilização nacional do Judiciário" para "estimular o acordo amigável como forma de solucionar conflitos judiciais". É a Semana Nacional da Conciliação, que, segundo se colhe do sítio daquele órgão na internet, "consiste em um esforço conjunto de todos os tribunais brasileiros no intuito de dar vazão aos processos que tramitam na Justiça".
Só no Estado de São Paulo, que concentra a maior parte dos processos em tramitação no Brasil, a expectativa, segundo consta do referido sítio, é a de que 70 mil ações "sejam solucionadas", abrangidas aí as que tramitam perante a Justiça comum (estadual e federal) e a Justiça do Trabalho. O slogan da campanha diz: "Com a conciliação todo mundo ganha. Ganha o cidadão. Ganha a Justiça. Ganha o país". Mas, sem pôr em dúvida a relevância e o mérito da empreitada, convém encarar o fato — que não é inédito — com realismo.
A superioridade das soluções alcançadas pelas próprias partes, no confronto com aquelas que resultam de decisão adjudicada pelo Estado, é inegável. A atuação do direito no caso concreto não é um objetivo a ser alcançado a qualquer custo. Tão ou mais importante do que isso é o que se convencionou chamar de escopo social da jurisdição: a pacificação pela eliminação da controvérsia.
Quando a superação do conflito resulta da vontade das partes -que fazem concessões recíprocas-, o ganho social é realmente mais expressivo. No entanto é preciso chamar a atenção para outros pontos que não podem ser desconsiderados pelo cidadão comum.
Primeiro, a conciliação não pode e não deve ser prioritariamente vista como forma de desafogar o Poder Judiciário. Ela é desejável essencialmente porque é mais construtiva. O desafogo vem como consequência, e não como a meta principal.
Essa constatação é importante: um enfoque distorcido do problema pode levar a resultados indesejados. Vista como instrumento de administração da máquina judiciária, a conciliação passa a ser uma preocupação com estatísticas.
Sua recusa pelas partes -direito mais do que legítimo- passa a ser vista como uma espécie de descumprimento de um dever cívico e, no processo, pode fazer com que se tome como inimigo do Estado aquele que não está disposto a abrir mão de parte do que entende ser seu direito. Daí a reputar a parte intransigente como litigante de má-fé vai um passo curto.
Isso é a negação da garantia constitucional da ação e configura quebra do compromisso assumido pelo Estado de prestar justiça. Esse mesmo Estado proíbe que o cidadão, salvo raras exceções, faça justiça pelas próprias mãos.
Segundo, é preciso considerar que a capacidade da conciliação para diminuir a carga do Poder Judiciário é relativa. Isso porque, mesmo à míngua de estatísticas, é sabido que grande parte das demandas e dos recursos pendentes é voltada contra o próprio Estado, cuja possibilidade de transigir é muitíssimo reduzida justamente porque a coisa pública é indisponível.
Para que algo diverso ocorra, é preciso que lei autorize. Portanto, a conciliação passa ao largo de uma das principais razões do acúmulo de trabalho no Judiciário.
Terceiro, é preciso cuidado para que não se pense na conciliação apenas como forma de resolver um problema que já chegou ao Judiciário. Para usar uma imagem colhida na doutrina norte-americana, esse tipo de raciocínio equivaleria a procurar a saúde nos hospitais. A conciliação deve ser estimulada antes do processo.
Finalmente, é preciso cuidado para não passar à população a imagem de que a conciliação é buscada uma vez por ano. Certamente não é essa a intenção da campanha.
Contudo, ela pode sugerir a ideia errada de que o Poder Judiciário e os operadores do Direito -incluindo aí advogados e membros do Ministério Público- não se empenham constantemente na busca de soluções de consenso.
Que estas considerações sejam lidas e entendidas como forma de reconhecer o valor da conciliação e o mérito da iniciativa. Elas precisam ser bem compreendidas pelos consumidores da Justiça, certamente a preocupação maior do Conselho Nacional de Justiça.
Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo desta terça-feira (8/12).
Só no Estado de São Paulo, que concentra a maior parte dos processos em tramitação no Brasil, a expectativa, segundo consta do referido sítio, é a de que 70 mil ações "sejam solucionadas", abrangidas aí as que tramitam perante a Justiça comum (estadual e federal) e a Justiça do Trabalho. O slogan da campanha diz: "Com a conciliação todo mundo ganha. Ganha o cidadão. Ganha a Justiça. Ganha o país". Mas, sem pôr em dúvida a relevância e o mérito da empreitada, convém encarar o fato — que não é inédito — com realismo.
A superioridade das soluções alcançadas pelas próprias partes, no confronto com aquelas que resultam de decisão adjudicada pelo Estado, é inegável. A atuação do direito no caso concreto não é um objetivo a ser alcançado a qualquer custo. Tão ou mais importante do que isso é o que se convencionou chamar de escopo social da jurisdição: a pacificação pela eliminação da controvérsia.
Quando a superação do conflito resulta da vontade das partes -que fazem concessões recíprocas-, o ganho social é realmente mais expressivo. No entanto é preciso chamar a atenção para outros pontos que não podem ser desconsiderados pelo cidadão comum.
Primeiro, a conciliação não pode e não deve ser prioritariamente vista como forma de desafogar o Poder Judiciário. Ela é desejável essencialmente porque é mais construtiva. O desafogo vem como consequência, e não como a meta principal.
Essa constatação é importante: um enfoque distorcido do problema pode levar a resultados indesejados. Vista como instrumento de administração da máquina judiciária, a conciliação passa a ser uma preocupação com estatísticas.
Sua recusa pelas partes -direito mais do que legítimo- passa a ser vista como uma espécie de descumprimento de um dever cívico e, no processo, pode fazer com que se tome como inimigo do Estado aquele que não está disposto a abrir mão de parte do que entende ser seu direito. Daí a reputar a parte intransigente como litigante de má-fé vai um passo curto.
Isso é a negação da garantia constitucional da ação e configura quebra do compromisso assumido pelo Estado de prestar justiça. Esse mesmo Estado proíbe que o cidadão, salvo raras exceções, faça justiça pelas próprias mãos.
Segundo, é preciso considerar que a capacidade da conciliação para diminuir a carga do Poder Judiciário é relativa. Isso porque, mesmo à míngua de estatísticas, é sabido que grande parte das demandas e dos recursos pendentes é voltada contra o próprio Estado, cuja possibilidade de transigir é muitíssimo reduzida justamente porque a coisa pública é indisponível.
Para que algo diverso ocorra, é preciso que lei autorize. Portanto, a conciliação passa ao largo de uma das principais razões do acúmulo de trabalho no Judiciário.
Terceiro, é preciso cuidado para que não se pense na conciliação apenas como forma de resolver um problema que já chegou ao Judiciário. Para usar uma imagem colhida na doutrina norte-americana, esse tipo de raciocínio equivaleria a procurar a saúde nos hospitais. A conciliação deve ser estimulada antes do processo.
Finalmente, é preciso cuidado para não passar à população a imagem de que a conciliação é buscada uma vez por ano. Certamente não é essa a intenção da campanha.
Contudo, ela pode sugerir a ideia errada de que o Poder Judiciário e os operadores do Direito -incluindo aí advogados e membros do Ministério Público- não se empenham constantemente na busca de soluções de consenso.
Que estas considerações sejam lidas e entendidas como forma de reconhecer o valor da conciliação e o mérito da iniciativa. Elas precisam ser bem compreendidas pelos consumidores da Justiça, certamente a preocupação maior do Conselho Nacional de Justiça.
Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo desta terça-feira (8/12).
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