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O STF e a incerteza jurídica (Editorial do Estadão de domingo)

Ao discutir um recurso no qual o governo italiano pedia esclarecimento de dúvidas constantes do texto que resume o julgamento do ex-ativista italiano Cesare Battisti, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a agir de maneira insólita, alterando a decisão que havia dado ao caso há exatamente um mês.

Foi uma "virada de mesa", afirmou o ministro Marco Aurélio Mello durante a sessão, que foi marcada por novas e constrangedoras cenas de bate-boca entre seus integrantes. "Estamos aqui a reabrir os votos. Isso é perigosíssimo", disse Mello nas altercações que teve com o ministro Eros Grau.

No julgamento de novembro, por 5 votos contra 4 o Supremo decidiu que Battisti deveria ser extraditado, mas que a palavra final caberia ao presidente da República, que poderia entregá-lo ou mantê-lo no País.

Em seu pedido de esclarecimento, os advogados do governo italiano perguntaram à mais alta Corte brasileira se Lula teria liberdade total para tomar essa decisão ou se seria obrigado a levar em conta o tratado de extradição que foi firmado pelo Brasil com a Itália, em 1989, e aprovado pelo Congresso, em 1993.

Ao responder ao pedido, Eros Grau afirmou que o presidente somente poderá agir com base nos termos do tratado, sob pena de responder por crime de responsabilidade e ficar sujeito a contestação no próprio Supremo. Na prática, isso limita as alternativas legais de que Lula disporia para decidir o futuro do ex-ativista, que foi condenado por quatro crimes de homicídio em plena vigência da democracia na Itália.

Como em momento algum o tratado de extradição Brasil-Itália foi invocado no julgamento de novembro, o "esclarecimento" acabou abrindo uma brecha jurídica para que os advogados do governo italiano entrem com um novo recurso contra a decisão do Supremo, o que pode mudar radicalmente os rumos do processo.

Para os ministros Marco Aurélio Mello e Ayres de Britto, o colega Eros Grau teria alterado o teor do voto que deu em novembro, derrubando com isso a decisão dos cinco ministros que, ignorando o tratado de extradição, deram a Lula a liberdade total para entregar ou não Battisti à Itália.

Qualquer que venha a ser o desfecho desse caso, ele é mais um exemplo da incerteza jurídica reinante no País. Como instância máxima do Poder Judiciário, cabe ao Supremo aplicar a Constituição e garantir a segurança jurídica nas relações sociais, econômicas e políticas.

Nos últimos tempos, contudo, tem proferido decisões confusas no mérito, imprecisas na forma e mal fundamentadas em termos legais, a ponto de gerar mais confusões do que oferecer soluções para quem bate em suas portas com o objetivo de preservar seus direitos.

A mudança no rumo do caso Battisti ocorreu uma semana após o STF, ao julgar o recurso impetrado pelo Estado contra a censura prévia que lhe está aplicada por uma Corte de 2º grau, impedindo-o de publicar reportagens sobre a Operação Boi Barrica, ter dado uma decisão contrária a outra que fora tomada meses antes, em matéria de direito de informação.

Na ocasião, a Corte revogou a velha Lei de Imprensa da ditadura militar e o extenso acórdão da decisão, divulgado na primeira semana de novembro, enfatizou a importância das liberdades públicas, das garantias fundamentais e da certeza jurídica para o regime democrático e o Estado de Direito.

Desde então, os advogados de jornalistas e órgãos de comunicação passaram a utilizar o acórdão como marco legal para suas petições nas diferentes instâncias judiciais.

No julgamento do recurso do Estado, porém, alguns ministros do STF ignoraram o voto dado no caso da Lei de Imprensa, desprezaram o acórdão correspondente e mantiveram a censura. E, ao justificar a contradição, apelaram para formalismos processuais, esquecendo-se de que, numa Corte constitucional, o que deve prevalecer são os princípios fundantes da República, princípios esses que - inclusive no que diz respeito à liberdade de imprensa -, pela Constituição de 88, são cláusula pétrea.

As incertezas jurídicas que têm sido causadas por tribunais cuja atribuição é garantir a segurança do direito e zelar pela Constituição, como os casos do Estado e de Battisti evidenciam, solapam a confiança da sociedade na Justiça e geram tensões institucionais, políticas e diplomáticas que poderiam ser evitadas.

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