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O efeito bumerangue da violência

Sérgio Augusto - O Estado de S.Paulo

- "Todos têm os seus judeus, e os judeus dos israelenses são os palestinos." A frase é de Primo Levi. Desconheço se ela valeu ao escritor italiano, judeu e sobrevivente de Auschwitz, algum insulto ou epíteto desairoso. Mas duvido que alguém tenha ousado xingar Levi de "antissemita enrustido" ou algo parecido, como tantos gentios que se opõem ao comportamento de Israel na Faixa de Gaza e arredores já o foram por aqueles que se esmeram em blindar Israel contra qualquer crítica ou reprimenda.

Como Levi, morto há 21 anos, estaria reagindo à última agressão israelense aos palestinos? Suponho, com alto grau de certeza, que não a teria apoiado; ao contrário do romancista israelense Amos Oz, por exemplo. É possível que Oz, mesmo vivendo em Israel, portanto ao alcance dos foguetes do Hamas, tenha mudado de opinião após ter lido as descrições da carnificina em Gaza publicadas pelo diário israelense Haaretz, visto as imagens da razia pela televisão, e acompanhado as reações contrárias à invasão pelo mundo afora ou mesmo em Jerusalém.

"Nunca me senti tão deprimido em relação a Israel, tão envergonhado pelas suas ações, tão desesperado por algum acordo de paz que possa terminar com o domínio dos mortos, em favor da oportunidade para os vivos", deplorou o comentarista político do International Herald Tribune Roger Cohen. Tem sido essa a tônica de inúmeros observadores e analistas de origem judaica cansados dos clichês retóricos e da novilíngua das autoridades israelenses. E, sobretudo, do efeito bumerangue de suas ações bélicas.

Imagino o abatimento do grande artista gráfico americano de origem judaica Art Spiegelman, autor de Maus, para quem nenhum conflito haveria no Oriente Médio se o Estado de Israel tivesse sido implantado no interior da Alemanha, não em terras palestinas. Spiegelman defendeu essa tese em 2003, na revista francesa Télérama. Repercussão negativa zero. Era apenas um wishful thinking, tão quimérico, aparentemente, quanto a certeza do presidente Shimon Peres de que todos nós ainda vamos agradecer a Israel pela Blitzkrieg em Gaza.

Bush e seus Strangeloves vaticinaram a mesma coisa em 2001, antes, durante e depois da derrubada de Saddam Hussein, e o mundo, não por ingratidão, claro, nunca os agradeceu.

Mas é de se supor que o conceito de "guerra preventiva" (e seu corolário, a "guerra defensiva") esteja saindo de moda. Tomara.

A invasão de Gaza pode ser vista, como o foi por Juan Cole na revista eletrônica Salon, como um testemunho eloquente do completo fracasso da doutrina neoconservadora que, nos últimos oito anos, norteou a política externa dos EUA. A queda, de resto, merecida, de Saddam, não ensejou a moderação do Hezbollah no Líbano, encheu a bola dos islâmicos radicais, renovou o gás dos khomeinistas iranianos e contribuiu para a vitória eleitoral do Hamas em Gaza, dois anos atrás, revés tão doloroso para Israel quanto a derrota militar para o Hezbollah no sul do Líbano, também em 2006.

As bombas disparadas pelos radicais do Hamas contra o sul de Israel foram apenas o pretexto que faltava para a complementação do implacável sítio imposto aos palestinos há quase três anos. Segundo Juan Cole, o que agora se consumou na Faixa de Gaza já estava delineado num paper intitulado A Clean Break (Uma freada hábil), produzido em 1996 por um obscuro think tank de Jerusalém para inflar o belicoso id do Likud (o partido de direita de Israel) e do então recém-eleito primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Não lhe cairia mal o título de Pax Israelensis.

Israel comporta-se como se não houvesse moderados no Hamas e todos os eventuais palestinos de boa índole, até porque despidos de qualquer ressentimento pelo espaço vital que lhes foi tirado em 1948, necessitassem de sua tutela. Sempre apoiado, incondicionalmente, pela Casa Branca e pelo Congresso dos EUA.

O veterano participante das negociações de paz no Oriente Médio Aaron David Miller revelou à Newsweek que nunca, nos últimos 25 anos, ouviu um representante dos EUA levantar a questão dos pesados danos causados pelos assentamentos israelenses na Palestina. Para Miller, que enxertou a revelação num artigo intitulado Se Obama é Sério - Tem de Endurecer com Israel, a única maneira de os EUA exercerem um papel construtivo no Oriente Médio é tomar coragem e criticar as ações de Israel quando estas puserem em risco os interesses dos americanos, e pressioná-lo.

Foi sem dúvida uma surpresa o comportamento do governo Bush no Conselho de Segurança da ONU, no meio da semana, preferindo ficar no muro a fechar questão a favor da invasão. O Senado americano, por sua vez, preparou uma resolução bipartidária defendendo a invasão e expressando "vigoroso e resoluto compromisso com o bem-estar, a segurança e a sobrevivência do Estado de Israel". O bem-estar, a segurança e a sobrevivência do Estado de Israel não dependem do que está ocorrendo na Faixa de Gaza. Ou melhor, o bem-estar e a segurança dependem, sim, mas pelo motivo inverso.

Um cessar-fogo não basta. Um efetivo mecanismo para evitar contrabando de armas para Gaza também se impõe, mas tampouco traria os benefícios necessários se, antes, não se suspendesse o bloqueio imposto por Israel, e, em seguida, uma das partes não topasse discutir a sério um duradouro tratado de paz, com rigorosa punição para quem rompesse qualquer um de seus dispositivos.

Mas se a guerra é um show off eleitoreiro, como muitos acreditam, ou mero confronto de "reverberações psicológicas" (como a qualificou o comentarista David Brooks), com um lado tentando quebrar o moral do outro, talvez nada possa ser feito de imediato.

Nem no médio e longo prazo, caso Israel, ratificando as suspeitas de seus desafetos, esteja levando adiante não uma guerra defensiva, mas expansionista.

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