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ADVOCACIA PÚBLICA: Interesse Público X Governante

Guilherme José Purvin de Figueiredo (*)

A Revista Consultor Jurídico, de 18 de outubro de 2002, divulgou a seguinte nota: "Defesa constituída - AGU representará Francisco Fausto em queixa-crime - O advogado-geral da União, Walter do Carmo Barletta, fará a defesa do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Francisco Fausto, na queixa-crime da Associação Nacional de Sindicatos Social Democratas contra ele e o jornalista Elio Gaspari. A entidade sindical entrou com uma queixa-crime no Supremo Tribunal Federal dizendo-se ofendida com declarações de Francisco Fausto publicadas na coluna do jornalista Elio Gaspari no dia 21/7".

A surpresa que essa notícia causa nos faz recordar das atribuições da Procuradoria Geral da Agência Nacional de Águas elencadas no art. 14, inciso II, da Lei n. 9984/00: "representar judicialmente os ocupantes de cargos e de funções de direção, inclusive após a cessação do respectivo exercício, com referência a atos praticados em decorrência de suas atribuições legais ou institucionais, adotando, inclusive, as medidas judiciais cabíveis, em nome e em defesa dos representados".

Surpreendentemente, uma lei editada em plena ditadura militar - a Lei n. 4.717/65, em seu art. 6º, § 3º -, continua sendo um dos textos normativos que de forma mais ética e democrática resguarda a distinção entre esfera pública e esfera privada, ao assim dispor: "A pessoas jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente".

Não podemos nos esquecer, porém, da Lei 8429/92, que em seu art. 11 dispõe que constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições.

A ação de improbidade administrativa pode ser intentada pelo Ministério Público ou pela Procuradoria Geral da pessoa jurídica interessada. O § 3º do art. 17, em sua redação original, dispunha com clareza que, "no caso da ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, a pessoa jurídica interessada integrará a lide na qualidade de litisconsorte, devendo suprir as omissões e falhas da inicial e apresentar ou indicar os meios de prova de que disponha". Suprir omissões e falhas da inicial visando o aperfeiçoamento da inicial, é evidente - jamais o seu insucesso. Afinal, o Estado figuraria como autor ou como litisconsorte ativo - jamais como litisconsorte passivo. Esse dispositivo, com a redação dada pela Lei n. 9.366, de 16 de dezembro de 1996, passou a ter a seguinte redação: "No caso de a ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, aplica-se, no que couber, o disposto no § 3º do art. 6º da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965". Com isso, foi relativizada a obrigatoriedade do ingresso do Estado no polo ativo da ação de improbidade administrativa, conquanto não a de opção pelo polo oposto ao do interesse público. A alteração, sem dúvida, constituiu um prenúncio do enfraquecimento institucional da Advocacia Pública brasileira (1).

Enquanto discutimos em congressos de procuradores e revistas científicas a necessidade de autonomia do advogado público na condução do processo, da prevalência do interesse público sobre a vontade do governante de plantão que não esteja amparada na lei, da indispensável extensão da garantia da inamovibilidade do procurador, para que possa atuar com firmeza em ações populares, ações de improbidade administrativa ou ações civis públicas, optando pelo ingresso da pessoa jurídica que representa no polo que melhor atender à moralidade administrativa, a Advocacia Pública Federal caminha a passos largos em sentido oposto. É de se temer que esta retrógrada tendência da Legislação Federal "pós-1999" sobre a Advocacia Pública Federal, assim como o arbítrio do Poder Executivo Federal, que passa a ver essa importantíssima Função Essencial à Justiça como mero escritório particular de pessoas físicas com atribuição de autoridade federal, acabe por conspurcar a Advocacia Pública dos Estados, do DF e dos Municípios.

Dois precedentes bastante conhecidos servem para justificar o que aqui se afirma:

1º - A opção do IBAMA, há alguns anos, de optar pelo ingresso no polo ativo de uma ação civil pública envolvendo interesses de uma poderosa multinacional do ramo dos transgênicos, resultou da exoneração imediata de seu então Procurador Geral, Dr. Francisco Ubiracy Craveiro de Araujo (2).

2º - No âmbito estadual, por outro lado, temos o histórico episódio do afastamento do Procurador do Estado Carlos Alberto Americano, de São Paulo, da Consultoria Jurídica da Ciência e Tecnologia, em razão de haver lavrado parecer contrário às famigeradas "importações de Israel", na época do governo Quércia (3).

O art. 14, II, da Lei 9984/00 é inconstitucional, pois fere o princípio da moralidade administrativa: não podem os cofres públicos financiar a defesa de ocupantes de cargos e de funções de direção, muito menos após a cessação do respectivo exercício. Os Procuradores da ANA não são advogados dos dirigentes daquela agência. Da mesma forma, não é o Advogado-Geral da União advogado da pessoa física que ocupa transitoriamente a função de Presidente do TST, mesmo porque a questão em debate transcende completamente os limites do exercício de uma função administrativa. Estamos sendo lesados enquanto contribuintes, pois não pagamos nossos impostos para isso; e estamos sendo aviltados enquanto advogados públicos, pois não prestamos concurso para defender particulares.

Fica a dúvida: caso o Ministério Público ajuize ação de improbidade administrativa pelo fato de um advogado público, no exercício de sua função, estar defendendo um particular, quem defenderá esse advogado público? Outro advogado público? E quem defenderá este segundo advogado público de uma outra ação de improbidade administrativa?

É muito importante que este debate transcenda o âmbito federal e alcance também a advocacia pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Evidentemente, o debate deve ser científico e não passional. Bem sabemos que, em período eleitoral, temas polêmicos envolvendo candidatos acabam sendo veiculados em ações populares temerárias. Também é sabido que denúncias infundadas provocam danos morais muitas vezes irreparáveis às vítimas, bastando aqui evocar a lembrança do linchamento público de professores inocentes, no caso da "Escola Base", em São Paulo/SP. Por outro lado, uma ação civil pública ou de improbidade administrativa, proposta pelo Ministério Público ou mesmo pela própria Procuradoria Geral do Estado ou do Município que não esteja solidamente embasada em provas concretas e premissas jurídicas consistentes pode provocar prejuízos de vulto aos Cofres Públicos, na hipótese de seu insucesso e posterior ajuizamento de ação indenizatória pela parte prejudicada.

Conquanto a ausência da previsão da inamovibilidade do Advogado Público na Constituição não signifique que não disponhamos de outros argumentos legais e constitucionais para rechaçar o arbítrio na hipótese de vir a caracterizar-se o mau uso da Advocacia Pública, é certo que hoje, mais do que nunca, a inserção no texto constitucional dessa garantia para o procurador passou a ser uma bandeira da luta pela moralidade administrativa.


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(*) O autor deste artigo é sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, onde exerce atualmente as funções de coordenador de comunicação e de diretor de sua Escola Superior. É Procurador do Estado de São Paulo e Professor de Direito Ambiental nos Curso de Especialização (pós-graduação) em Direito Ambiental das Faculdades de Direito e de Saúde Pública da USP e da Universidade Santa Cecília e nos cursos de graduação da Universidade São Francisco. É membro da Comissão de Direito Ambiental da IUCN. É membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Ambiental da Editora Revista dos Tribunais. É diretor da Revista de Direitos Difusos da Editora Adcoas-Esplanada.

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