Laura Greenhalgh, de O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em dezembro de 1906, Euclides da Cunha concluiu a saudação falando do poeta Valentim Magalhães, a quem iria suceder na cadeira de número 7, que também fora do poeta Castro Alves. Disse que faltava à obra de Magalhães a necessária concentração intelectual, “segredo dos gênios e dos medíocres”. Que as mundanidades e o gosto pela polêmica tiraram-no do foco literário. E terminou assim: “Entregou-se de corpo e alma ao turbilhão sonoro e fulgurante da existência. Foi seu grande defeito, dizem. Mas este defeito, o seu maior defeito, é a mais bela imperfeição da nossa vida: o defeito do viver demais.” Magalhães morreu aos 44 anos. Pois quando pronunciou este discurso, Euclides estava bem perto de seu próprio fim – tombou aos 43 anos, em 15 de agosto de 1909.
O centenário de morte do autor de Os Sertões, celebrado pelo Grupo Estado a partir de hoje e ao longo de 2009, relembra a trajetória do engenheiro, escritor, correspondente de guerra, colaborador deste jornal por duas décadas e do homem que teve o “defeito do viver demais”, embora morresse tão cedo. Não fosse abatido pelos tiros do amante de sua mulher, Euclides certamente envelheceria propondo desdobramentos à sua obra.
Como fez ao voltar da expedição a Canudos (BA), em 1897, a convite de Julio Mesquita, diretor do Estado: o plano de ação que vislumbrou para a cobertura de um dos conflitos mais sangrentos da nossa história mudou no contato com o ‘Brasil profundo’. A ponto de Euclides assumir, quando mais tarde publicou Os Sertões, um outro olhar sobre o País. O câmbio radical levou Monteiro Lobato a comentar: “Admiro Euclides da Cunha por seus valores e sobretudo pela coragem moral que sempre demonstrou. Foi ele quem nos ensinou a enfrentar a realidade e a não mentir a nossa eterna mentira patriótica.”
POR RIOS DANTES NAVEGADOS
“O Ano de Euclides” é um projeto jornalístico, cultural e multimídia do Grupo Estado, que deu início neste final semana com a ida do repórter Daniel Piza e do fotógrafo Tiago Queiroz ao Estado do Acre, de onde partiram para refazer a expedição à região do Alto Purus, que o escritor empreendeu entre abril e outubro de 1905. Hoje, quando os leitores estiverem com esta página nas mãos, Piza e Queiroz já terão deixado o porto de Sena Madureira, a duas horas de Rio Branco, iniciando a rota fluvial que os levará até o Peru. Vão atravessar seringais, visitar comunidades ribeirinhas, fazer contato com tribos indígenas.
De enorme significado cultural e sociológico, a expedição amazônica de Euclides representa um período ainda pouco conhecido na vida do escritor. Se em Canudos ele descobre a figura do sertanejo, no Alto Purus depara-se com o seringueiro em sua concepção áspera da vida. “O seringueiro rude, ao revés do artista italiano, não abusa da bondade de seu deus (...). É mais forte. É mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza”, escreveu no livro póstumo À Margem da História.
Traumatizado pela experiência de Canudos, Euclides combateu a ideia de o Brasil entrar em guerra com o Peru pela posse do que seria hoje uma parte do Estado do Acre. Condenou o envio de tropas à região, defendeu um acordo por via diplomática e acabou sendo incumbido pelo Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Sua missão: fazer o levantamento cartográfico da região e determinar a nascente do rio que separa os dois países.
Ao refazer o mesmo trajeto 104 anos depois, Daniel Piza estabelecerá pontes entre passado e presente. “O que terá mudado desde a ida de Euclides? O que permanece igual? O que restou intacto? Encontraremos rastros da expedição?”, pergunta-se. Assessorados por pesquisadores e gente da região, repórter e fotógrafo já percorrem rios acreanos. Passarão pelo município de São Brás, onde o barco de Euclides naufragou, chegarão a Triunfo, localidade da primeira reunião da comissão bilateral, cruzarão a fronteira e finalmente alcançarão o Rio Cujar, na cabeceira do Purus. Há um século, Euclides e seu grupo atracaram em margens peruanas como náufragos. Estavam famintos, extenuados, tomados pela malária.
A expedição poderá ser acompanhada em boletins pela Rádio Eldorado, notícias em tempo real no portal estadao.com.br e matérias no próprio jornal (caderno Vida&). Serão relatos colhidos no desenrolar da aventura, compondo um grande “diário de expedição”, depois transformado e ampliado em publicações especiais.
NOS ARQUIVOS DA ‘CASA’
SÃO PAULO - Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em dezembro de 1906, Euclides da Cunha concluiu a saudação falando do poeta Valentim Magalhães, a quem iria suceder na cadeira de número 7, que também fora do poeta Castro Alves. Disse que faltava à obra de Magalhães a necessária concentração intelectual, “segredo dos gênios e dos medíocres”. Que as mundanidades e o gosto pela polêmica tiraram-no do foco literário. E terminou assim: “Entregou-se de corpo e alma ao turbilhão sonoro e fulgurante da existência. Foi seu grande defeito, dizem. Mas este defeito, o seu maior defeito, é a mais bela imperfeição da nossa vida: o defeito do viver demais.” Magalhães morreu aos 44 anos. Pois quando pronunciou este discurso, Euclides estava bem perto de seu próprio fim – tombou aos 43 anos, em 15 de agosto de 1909.
O centenário de morte do autor de Os Sertões, celebrado pelo Grupo Estado a partir de hoje e ao longo de 2009, relembra a trajetória do engenheiro, escritor, correspondente de guerra, colaborador deste jornal por duas décadas e do homem que teve o “defeito do viver demais”, embora morresse tão cedo. Não fosse abatido pelos tiros do amante de sua mulher, Euclides certamente envelheceria propondo desdobramentos à sua obra.
Como fez ao voltar da expedição a Canudos (BA), em 1897, a convite de Julio Mesquita, diretor do Estado: o plano de ação que vislumbrou para a cobertura de um dos conflitos mais sangrentos da nossa história mudou no contato com o ‘Brasil profundo’. A ponto de Euclides assumir, quando mais tarde publicou Os Sertões, um outro olhar sobre o País. O câmbio radical levou Monteiro Lobato a comentar: “Admiro Euclides da Cunha por seus valores e sobretudo pela coragem moral que sempre demonstrou. Foi ele quem nos ensinou a enfrentar a realidade e a não mentir a nossa eterna mentira patriótica.”
POR RIOS DANTES NAVEGADOS
“O Ano de Euclides” é um projeto jornalístico, cultural e multimídia do Grupo Estado, que deu início neste final semana com a ida do repórter Daniel Piza e do fotógrafo Tiago Queiroz ao Estado do Acre, de onde partiram para refazer a expedição à região do Alto Purus, que o escritor empreendeu entre abril e outubro de 1905. Hoje, quando os leitores estiverem com esta página nas mãos, Piza e Queiroz já terão deixado o porto de Sena Madureira, a duas horas de Rio Branco, iniciando a rota fluvial que os levará até o Peru. Vão atravessar seringais, visitar comunidades ribeirinhas, fazer contato com tribos indígenas.
De enorme significado cultural e sociológico, a expedição amazônica de Euclides representa um período ainda pouco conhecido na vida do escritor. Se em Canudos ele descobre a figura do sertanejo, no Alto Purus depara-se com o seringueiro em sua concepção áspera da vida. “O seringueiro rude, ao revés do artista italiano, não abusa da bondade de seu deus (...). É mais forte. É mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza”, escreveu no livro póstumo À Margem da História.
Traumatizado pela experiência de Canudos, Euclides combateu a ideia de o Brasil entrar em guerra com o Peru pela posse do que seria hoje uma parte do Estado do Acre. Condenou o envio de tropas à região, defendeu um acordo por via diplomática e acabou sendo incumbido pelo Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Sua missão: fazer o levantamento cartográfico da região e determinar a nascente do rio que separa os dois países.
Ao refazer o mesmo trajeto 104 anos depois, Daniel Piza estabelecerá pontes entre passado e presente. “O que terá mudado desde a ida de Euclides? O que permanece igual? O que restou intacto? Encontraremos rastros da expedição?”, pergunta-se. Assessorados por pesquisadores e gente da região, repórter e fotógrafo já percorrem rios acreanos. Passarão pelo município de São Brás, onde o barco de Euclides naufragou, chegarão a Triunfo, localidade da primeira reunião da comissão bilateral, cruzarão a fronteira e finalmente alcançarão o Rio Cujar, na cabeceira do Purus. Há um século, Euclides e seu grupo atracaram em margens peruanas como náufragos. Estavam famintos, extenuados, tomados pela malária.
A expedição poderá ser acompanhada em boletins pela Rádio Eldorado, notícias em tempo real no portal estadao.com.br e matérias no próprio jornal (caderno Vida&). Serão relatos colhidos no desenrolar da aventura, compondo um grande “diário de expedição”, depois transformado e ampliado em publicações especiais.
NOS ARQUIVOS DA ‘CASA’
A partir do mês de abril, a celebração do centenário entra em outros domínios: o Caderno Cultura inaugurará a seção “Euclides no Estado”, em que serão reproduzidos trechos de artigos do escritor para o jornal, acompanhados de comentários críticos feitos por estudiosos.
A relação histórica entre o articulista e o periódico será realçada. Euclides da Cunha foi uma aposta jornalística que Julio Mesquita, então diretor de A Província de São Paulo, fez em um jovem e exaltado ativista republicano. Matriculado no curso de Estado-Maior e Engenharia da Escola Militar, na Praia Vermelha (RJ), Euclides, ainda cadete, protagonizou uma cena de indisciplina que ficaria famosa: jogou ao chão o sabre-baioneta, diante do ministro da Guerra, em protesto contra o plano de carreira militar. Pelas leis do Conselho de Guerra, poderia ser condenado à forca (escapou por intervenção de Pedro II, a quem atacava), mas foi expulso da escola. É nessa fase que veio a São Paulo, para tratar uma colaboração com o jornal que se estenderia, com idas e vindas, por mais de 20 anos.
Seu primeiro artigo para a Província, depois Estado, foi publicado em 22 de dezembro de 1888, com ataques à família real. Semanas depois, assina “89”, artigo em que relaciona a Revolução Francesa de 1789 ao movimento republicano no Brasil. Em “A Nossa Vendeia”, de março de 1897, analisa a derrota da terceira expedição do governo contra os conselheiristas em Canudos. E logo se prepara para acompanhar a quarta expedição, que enfim dizimaria o arraial nos sertões. Viajou como correspondente do jornal.
Também a expedição amazônica foi tema de vários artigos. Em um deles, publicado em maio de 1904, Euclides escreveu, a caminho de Manaus: “A guerra iminente tem uma feição gravíssima. Se contra o Paraguai, num teatro de operações mais próximo e acessível, aliados às repúblicas platinas, levamos cinco anos para destruir os caprichos de um homem, certo não se podem prever os sacrifícios na luta contra a expansão vigorosa de um povo.” Deuses incas devem ter iluminado seu pensamento: que cicatrizes deixaria para o Brasil uma guerra no coração da Amazônia?
Em agosto, mês do centenário, o Grupo Estado prevê, como parte do projeto, a realização em São Paulo de um seminário internacional, com a participação de especialistas do Brasil e de fora. Não é de hoje que a obra euclidiana tornou-se objeto de traduções e pesquisas em outros países, além de inspirar o cinema e o teatro. É o ‘olhar estrangeiro’ rompendo barreiras com a cultura brasileira, como fez Samuel Putnan nos anos 40, ao verter para o inglês Os Sertões ( com o título Rebellion in the Backland). Neste seminário, entre os painéis temáticos, pretende-se focalizar Euclides da Cunha, o poeta, cuja produção, também desconhecida, condensa um lirismo lúcido e trágico. Talvez, a sua síntese possível.
A relação histórica entre o articulista e o periódico será realçada. Euclides da Cunha foi uma aposta jornalística que Julio Mesquita, então diretor de A Província de São Paulo, fez em um jovem e exaltado ativista republicano. Matriculado no curso de Estado-Maior e Engenharia da Escola Militar, na Praia Vermelha (RJ), Euclides, ainda cadete, protagonizou uma cena de indisciplina que ficaria famosa: jogou ao chão o sabre-baioneta, diante do ministro da Guerra, em protesto contra o plano de carreira militar. Pelas leis do Conselho de Guerra, poderia ser condenado à forca (escapou por intervenção de Pedro II, a quem atacava), mas foi expulso da escola. É nessa fase que veio a São Paulo, para tratar uma colaboração com o jornal que se estenderia, com idas e vindas, por mais de 20 anos.
Seu primeiro artigo para a Província, depois Estado, foi publicado em 22 de dezembro de 1888, com ataques à família real. Semanas depois, assina “89”, artigo em que relaciona a Revolução Francesa de 1789 ao movimento republicano no Brasil. Em “A Nossa Vendeia”, de março de 1897, analisa a derrota da terceira expedição do governo contra os conselheiristas em Canudos. E logo se prepara para acompanhar a quarta expedição, que enfim dizimaria o arraial nos sertões. Viajou como correspondente do jornal.
Também a expedição amazônica foi tema de vários artigos. Em um deles, publicado em maio de 1904, Euclides escreveu, a caminho de Manaus: “A guerra iminente tem uma feição gravíssima. Se contra o Paraguai, num teatro de operações mais próximo e acessível, aliados às repúblicas platinas, levamos cinco anos para destruir os caprichos de um homem, certo não se podem prever os sacrifícios na luta contra a expansão vigorosa de um povo.” Deuses incas devem ter iluminado seu pensamento: que cicatrizes deixaria para o Brasil uma guerra no coração da Amazônia?
Em agosto, mês do centenário, o Grupo Estado prevê, como parte do projeto, a realização em São Paulo de um seminário internacional, com a participação de especialistas do Brasil e de fora. Não é de hoje que a obra euclidiana tornou-se objeto de traduções e pesquisas em outros países, além de inspirar o cinema e o teatro. É o ‘olhar estrangeiro’ rompendo barreiras com a cultura brasileira, como fez Samuel Putnan nos anos 40, ao verter para o inglês Os Sertões ( com o título Rebellion in the Backland). Neste seminário, entre os painéis temáticos, pretende-se focalizar Euclides da Cunha, o poeta, cuja produção, também desconhecida, condensa um lirismo lúcido e trágico. Talvez, a sua síntese possível.
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